Além de Angola - romantismos lusógrafos


Além de Angola, a ambiência intelectual e poética lusófona de Cordeiro da Mata e seus pares incluía a Marquesa de Alorna, Bocage, Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Gonçalves Crespo, Álvares de Azevedo (Garmes, 2006 p. 221), Bulhão Pato, João de Deus, Luz Soriano, Tomás Ribeiro, Pinheiro Chagas, Júlio César Machado, Teixeira Bastos e, muito possivelmente, Gonçalves Dias (lido e citado por Maia Ferreira) e João de Lemos (de que também não vi nenhum sinal ainda nas bibliotecas de Luanda, embora frequente epígrafes dos nossos vates). Eventualmente leu também Cordeiro da Mata os escritos do novelista madeirense e republicano Afonso Botelho, que viveu em Angola, onde foi co-redator de O imparcial, em Lisboa (onde colaborou na imprensa ligada à Geração de 70) e em Nova Iorque, onde veio a falecer desiludido e retirado. No conjunto, encontramos um grupo constituído (na sua maioria) por românticos e ultrarromânticos de raiz, ainda que Gonçalves Crespo tenha vindo a ser sobretudo parnasiano, mas um parnasiano que sabia retratar sentimentos e afetos tipicamente românticos (o que, aliás, se verá também no mais puro Olavo Bilac: “ora direis, ouvir estrelas”…), que teve por amigos, entre outros, António Xavier Rodrigues Cordeiro, editor do Almanach de lembranças, e Bulhão Pato (amigos comuns a Gonçalves Dias) e que procurava avaliar as pessoas independentemente das escolas. As restantes referências (não-românticas) apontam para os meios do realismo e do republicanismo. Vejamos, resumidamente, quem era cada um deles – e dispenso-me de biografar os mais conhecidos, bem como de comentar os já comentados (exceto em aspetos ainda não referidos).

 

De facto, há poetas e escritores menos conhecidos hoje mas com os quais, por vezes, os nossos parecem ter intertextualizado a par dos canónicos. É o caso, por exemplo, de Nuno Álvares Pereira Pato Guerreiro Velho Moniz Perdigão, ou Pato Moniz, ou Nuno Álvares Pereira Pato Moniz (1781-1826). Descendente da velha nobreza lusitana, herdeiro e dono de solar antigo (séc. XV) em Alcochete, poeta, político maçónico, jornalista, grande amigo, editor e discípulo de Bocage, escreveu um “poema herói-cómico” satirizando o PJosé Agostinho de Macedo, a que por isso mesmo deu título de Agostinheida (“poema heroe-comico em 9 cantos” (Moniz, 1876)). J. A. Macedo era, como se sabe, inimigo soez de Bocage.

Não sei se Cordeiro da Mata alguma vez o leu, mas veio-me a suspeita quando reparei nestes versos inseridos em Delírios, com que se inicia o poema «A um analfabeto / (que se tinha em conta de sábio)»: 

Vós ó civilizadas gentes, que os sucessos

Estupendos e raros, sempre ouvis expressos

Em fúlgida dicção; 

Veio-me a suspeita porque, procurando versos semelhantes em rede, encontrei estes de Pato Moniz:

Vós que folgais de ouvir bem celebrados

Em fúlgida dicção heróis sublimes

Ambos os poemas podem ser considerados satíricos e, como se vê, une-os uma expressão exatamente igual e algumas companhias (ouvir, "expressos" ou "bem celebrados", "Vós",  "em fúlgida dicção"), sendo que o verso que a antecede, no poema de Cordeiro da Mata, está semanticamente próximo dos versos que a antecedem em Pato Moniz. Esta foi, aliás, a única expressão exatamente igual que encontrei na minha pesquisa via google, não havendo qualquer outra em que ‘fúlgida’ e ‘dicção’ estivessem juntas. Ambos, entretanto, leram Bocage.


Em Bocage aparece “dicção”, mas é a “dicção narrativa”. Coincidência ou não, a terceira secção do poema, nos Delírios (Matta, 2001 p. 116), inclui no primeiro verso uma referência a “Elmano”, ou seja, Bocage, ou seja, o amigo e mestre de Pato Moniz – cujo discípulo ainda veio a anotar os seus poemas. Diz o verso:

Se és de Elmano o Satanaz

Na mesma estrofe surge a expressão “pobre lapuz”. Encontro-a num livro despretensioso, de um professor do Liceu do Porto, publicado em 1853 (Silva, 1853 p. 172). Mas antes a encontro num apólogo de Bocage e, quer pelo texto do nosso poeta, quer pelo conteúdo do apólogo, parece mais provável a expressão constituir uma reminiscência de uma leitura criativa do sátiro português e sua apropriação para aplicá-la em figura pretensiosa da Angola desse tempo – ou simplesmente sua apropriação.

 

apólogo chama-se «Os cães domésticos, e o cão montanhez», uma fábula em verso na qual se critica abertamente o racismo, sobretudo no final. Antes se dá o contexto:

 

Afirma escritor antigo [deve, portanto, ser uma fábula de Esopo, ou de Fedro]

Que lá n’um grande sertão [1]

Três cães perdidos na caça

Viram sósinho outro cão.

Que este era cor de azeviche,

Aquell’outros cor de neve

        […/…]

Tinham pelo muito fino

e eram da cidade os três

 

– enquanto o negro era do campo (Bocage, 1853 pp. III, 193). O mais valentão dos cães brancos vira-se para o cão negro e diz-lhe que ele é escravo deles. Sigamos a narrativa: 

 

Em fim, co’um ar espantado 

Lhes disse o pobre lapuz [2]:

Eu captivo! Porque crime? 

Vós senhores! Com que jus?

 

E a resposta chega, em voo rasante, no final:

 

«O nosso jus é a força,

O teu delicto é a cor.»

De homens pretos, e homens brancos

Cuido que fala este autor.

 

No apólogo anterior, Bocage fala de «Dois burros e um mono», pondo na voz do mono este verso: “Burro com fumos de mestre” – que resume o dedicado de Cordeiro da Mata (“A um analfabeto / que se tinha em conta de sábio”).

 

Na sua estrofe, o poeta angolano caracteriza o seu dedicado como "alarve, bruto e capataz". Ao fazê-lo, parece adaptar à mesma figura local outro verso de Bocage. Desta vez o verso vem no vol. I da mesma coletânea que tenho citado (Bocage, 1853 p. 321) e diz assim:

 

Oh dos brutos e alarves capataz

 

Trata-se de um soneto e, como se não bastasse, a composição bocagiana tem por título, também, uma dedicatória. Por sinal, a dedicatória faz lembrar a personagem focada por Cordeiro da Mata:

 

A um, que não sabendo nem escrever o seu nome,

Dizia que os versos do autor eram errados. 

 

A intertextualização permite-nos compreender melhor a secção III do poema de Cordeiro da Mata, que já vale a pena transcrever:

 

Se és de Elmano o Satanás,

Alarve, bruto e capataz;

Quem na mente t’inflama o gás,

Tu que em divórcio co’o alfabeto

Andas sempre, pobre lapuz!?...

Quem morder sílabas t’induz,

Tu que nem o sinal da cruz

Com tinta – em quadro branco ou preto –

Fazes, ó santo analfabeto?!!...

 

Se compararmos agora com todo o soneto de Bocage, vemos que esta estrofe de Cordeiro da Mata, além das citadas intertextualizações, reestrutura os tercetos do sadino:

 

Cara de réu, com fumos de juiz,

Figura de presepe, ou de entremez,

Mal haja quem te sofre, e quem te fez,

Já que mordeste as décimas que fiz:

 

Hei-de pôr-te na testa um T com giz,

Por mais e mais pinotes, que tu dês;

E depois com dois murros, ou com três,

Acabrunhar-te os queixos, e o nariz:

 

Quem da cachola vã te inflama o gás,

E a abocanhares sílabas te induz,

Ó dos brutos e alarves capataz?

 

Nem sabes o A B C, pobre lapuz;

E pasmo de que, sendo um Satanás,

Com tinta faças o sinal da Cruz!

 

Voltando, agora, ao início do poema de Cordeiro da Mata, ele é, também, um manancial de indícios. A expressão que passa (enjambement ou transporte) do primeiro para o segundo verso (“sucessos estupendos”) aparece tal-qual em dois momentos apenas, entre os livros digitalizados e disponíveis em linha – ambas referidas onde falo das possíveis intertextualizações com Camilo Castelo Branco.

 

Outra expressão usada nesse início, que parece comum (“engenhos portentosos”), curiosamente só encontra paralelo exato em outro poeta do fim do século XVIII e começo do seguinte. A obra intitula-se Georgeida, poema, é dedicada a Robert Page, comerciante inglês na ilha da Madeira, de onde o autor é natural – Francisco Paula de Medina e Vasconcelos (1768-1824), hoje justamente esquecido (Vasconcellos, 1819 p. 24), mas ao tempo um revolucionário que, por isso, foi expulso de Coimbra, depois da Madeira e viveu os últimos anos da sua vida no degredo em Cabo Verde.

 

Continuando a explorar as intertextualizações possíveis nessa primeira estrofe realizadas, encontramos uma expressão (“ingente inspiração”) que nos parece comum mas só vemos, exatamente assim, num livro de 1862, publicado no Rio de Janeiro (Ribeiro, 1862 p. 8). Pode ser coincidência (sempre pode), mas também aí temos um poema, não propriamente satírico ou irónico, porém bem disposto e com notório sentido de humor.

 

Outro ainda é o “raro caso” dessa expressão (“raro caso”). Escrita assim, com inversão sintática, não é comum. Também me surpreende que não seja, mas experimente o leitor uma busca em linha para conferir os resultados. O ‘livro’ em que se encontra esta expressão exatamente assim e que está em linha é Xavier dormindo e Xavier acordado, do Pe António Vieira (Vieira, 1694 p. 5). Haverá mais, com certeza.

 

Não fiquemos por aí. Deparamos ainda com outra inversão sintática: “nas africanas plagas sucedido”. A expressão “plagas africanas” é comum, incluindo na poesia produzida no local, ou mesmo publicada no local, mas a sua inversão (“africanas plagas”) é menos comum do que eu pensava, a julgar pelo que pesquisei na rede. Ela aparece assim, tal-qual, em Os animais falantes: poema épico, de João Batista Casti (1724-1803), traduzido para português (Casti, 1835 p. 334). A obra, junto com os Contos, forma a dupla mais conhecida do autor e remete-nos, como facilmente se percebe, para as fábulas, ou estórias em que os animais falam. Justamente no poema de Cordeiro da Mata, no segundo verso a seguir àquele em que a expressão aparece, escreve-se:

 

Se não possui o conto do grã fabulista

 

Pode ser coincidência (sempre pode), mas a expressão aparece tal-qual no fabulista Casti (“nas africanas plagas” – neste caso “arenosas”).

Outra expressão, esta comum no princípio do século XIX no Brasil e em Portugal, é “o que tem de pasmar”. Ela não surge exatamente assim mas “tem de” ou “tem para” se “pasmar” aparece integrado em outras frases várias vezes.

 

Pode, sem dúvida, ser tudo coincidência. Pode, igualmente, haver outras intertextualizações, quiçá mais fortes, que de momento me não ocorrem e que surjam em livros não disponíveis em rede. Mas o leitor certamente reparou que, na maioria dos casos, os livros em que as expressões são exatamente iguais datam do princípio do século XIX, ou de logo antes. Isso faz todo o sentido, porque o poema se dedica a, e focaliza em, “um analfabeto que se tinha em conta de sábio”. Para sugerir a pompa do que se tem em conta de sábio, o poeta vai buscar expressões a livros antigos, ou simples e confusamente as rememora sem se lembrar bem de onde vieram, privilegiando as inversões sintáticas, típicas do período neoclássico e do princípio do Romantismo. Entretanto, é possível que o nosso intelectual tenha lido esses livros todos, alguns disponibilizados pela Igreja, outros simplesmente circulando por ali, entre a casa grande e a geribita. Ao rentabilizar o recurso a expressões anteriores, ainda que imediatamente anteriores, ele demonstra uma consciência de mercado em que havia público para compreender e assimilar o recurso.



Quanto a Almeida Garrett (1799-1854), principal referência poética do romantismo português, que Machado de Assis venera mas acha (com razão, a meu ver) por vezes ingénuo, era lido e louvado em Angola através de muitas obras. E não foi só lido por portugueses residentes, pois até a sua crítica ao colonialismo, quando escreveu e poetizou sobre o Brasil, encontraria mais eco nos filhos da terra que nos estrangeiros residentes. Crítica, aliás, ao colonialismo, à escravatura e ao racismo:

 

Malfadado Brasil; metal p'rigoso

Germe de crimes preço de mil vidas

Que de augusta razão por vil opróbio

À dif’rença da cor veda o ser de homem.

 

Nesse aspeto, não devemos esquecer que Almeida Garrett e Joaquim António de Carvalho e Menezes coincidiram nas Cortes em Lisboa, reportando o segundo várias das posições assumidas pelo primeiro, nas páginas do seu (de Carvalho e Menezes) O Paquete do Ultramar. Em Angola encontramos obras de Garrett a partir, pelo menos, de 1855, num espólio de Benguela, onde se menciona Camões: poema (a primeira edição, de 1825). Logo no ano seguinte (1856) aparece a primeira edição das Flores sem fruto num segundo espólio (Garrett, 1845). Não estávamos muito atrasados nas leituras (leve-se em conta que os dados vieram de inventários orfanológicos). No Arquivo Histórico de Luanda há um exemplar da edição conjunta, já tardia e consagradora, das Fábulas e das Folhas caídas  (Garrett, 1859) e outro na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (assinado por J. E. Salles Ferreira), onde está igualmente numa coleção de toda a sua obra, publicada pela Imprensa Nacional de Lisboa (com autógrafos de Alfredo Troni). Dentro da obra, as Fábulas e Sonetos reportam-se ao período neoclássico da sua poesia, que inclui parte do período passado na Universidade de Coimbra. 

Sintomático vermos aí as assinaturas de Alfredo Troni. Enquanto animador cultural, diretor de jornal e jornalista, advogado e ficcionista, ele conviveu com a geração do seu Jornal de Loanda. A assinatura de Joaquim Eugénio de Salles Ferreira é também importante, dada a sua posição no ensino e no interior da elite luandense. A geração de 1878 deve ter lido Garrett pelas suas mãos, tanto quanto por outras e o Garrett inicial, não só o das Folhas, o que é muito importante para compreender o seu conservadorismo estilístico, a sua verbosidade e alguns ressaibos de mitos veiculados pela literatura neoclássica e pelos primeiros românticos – tudo muito presente na Lírica de João Mínimo e nas Flores sem fruto.

 

Faço uma listagem dos livros de Garrett seguramente lidos entre nós, para tornar mais clara ao leitor a sua presença bibliográfica no meio urbano da época. Encontrei, nas bibliotecas e arquivos investigados em Benguela e Luanda, os seguintes títulos saídos a tempo de a geração de Cordeiro da Mata os ler:

 

1) Camões: poema (escrito em 1825). Esta é uma das obras em que o romantismo, influenciado por Rousseau, Chateaubriand (leitor e admirador de Camões), Lamartine (outro admirador de Camões), mais se faz sentir no autor – a par de laivos ainda, e vincos, da formação neoclássica, particularmente de Filinto Elíseo (de que é exemplo também a estrofe citada acima).

 

2) D.ª Branca (escrito em 1826). Trata-se da 5.ª edição, incluída na publicação das Obras Completas na Imprensa Nacional portuguesa, saindo este volume em 1874. O exemplar foi comprado e assinado por Alfredo Troni, em Luanda, a “9 de Junho de 1880”, sobre uma data, manuscrita, de 1876 (compra em segunda mão). Apresenta ainda carimbo da “Biblioteca Municipal de Loanda”. Recorde-se que estas duas primeiras obras assinalam o princípio do Romantismo em Portugal e estão marcadas pela educação clássica e neoclássica do autor (D.ª Branca, aliás, é dedicada a Filinto Elíseo), assegurada pelo Bispo de Angra do Heroísmo, seu tio. Apesar disso, diz Lopes de Mendonça, nelas Garrett “inventa o poema da atualidade, dando-lhe um cunho, uma individualidade toda portuguesa” (Mendonça, 1855 pp. 78, 81), o que julgo passar principalmente pelo bom conhecimento do vernáculo, ou seja, pela tal pátria-língua de que Pessoa falaria muito mais tarde. Estas duas obras, superiores no entender de Lopes de Mendonça, teriam aberto o caminho poético e nacional de Garrett, sendo portanto seminais.

 

3) Flores sem fruto, encontradas num espólio de 1856, em Benguela, sem mais indicações. A primeira edição é de 1845 e reúne um vasto arco temporal de produção lírica (1823-1844) – por isso mesmo elucidativo da progressão poética de Garrett, tanto mais que se apresenta na continuidade da produção e do período de produção de João Mínimo, incluindo mesmo, por esse motivo, alguns poemas do primeiro livro (Garrett, 1845 pp. VI-VII).  Como o título indica, são já poemas, nos motivos e temas, mais inclinados à melancolia do que à reprodução da espécie (ainda que o título aponte às flores poéticas por oposição às flores utilitárias dos economistas liberais e seus seguidores (Garrett, 1845 p. 8)). Neles encontramos o nítido peso da formação neoclássica do autor, a par de algumas composições mais propriamente românticas, entre as quais se destaca o famoso poema «As minhas azas», escrito já entre 1840 e 1845. É o próprio Garrett quem o confessa: “ao pé do acantho da lyra antiga, vai o trevo e o goivo que inramavam o alahude romântico” (Garrett, 1845 p. 9). A estruturação é que era já da nova escola, imitando a casualidade natural dos acidentes da vida – o que também sucede nos nossos poetas novecentistas, a começar por Maia Ferreira e, mais uma vez, excetuando o parnasiano Pedro Félix Machado. Note-se como a saída deste livro está próxima da publicação das Espontaneidades, que mantêm com ele cumplicidades afastando-se, mesmo assim, da maior parte da sua ganga neoclássica (se excetuarmos o recurso a algumas inversões sintáticas violentas ou de mau gosto, feitas apenas para facilitar o cumprimento das regras relativas à rima e à métrica).  

 

4)Romanceiro, exemplar da 3.ª ed. (v. II), saída em Lisboa, na Imprensa Nacional, em 1875 e que se encontra na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. O Romanceiro vem coroar a adesão e atenção garrettianas à lírica popular, uma prática típica do romantismo europeu, que depois o realismo repolitizou. Antero de Quental possuía, na sua biblioteca, justamente esta edição do Romanceiro (Fraga, et al., 1991 p. 7), que o poeta português iniciara quando exilado em Inglaterra e sob influência do trabalho de Walter Scott.

 

Mas o mais importante ainda sobre o Romanceiro, para nós, é lembrar, com Carlos d’Alge, que esta ligação de Garrett às tradições populares portuguesas lhe traz versões pernambucanas das mesmas.

As tradições orais que os portugueses transportavam na memória, por exemplo quando vinham para Angola, não costumam ser consideradas quando estudamos a nossa literatura. Porém tiveram, em alguns lugares e momentos, uma presença mais insistente (quotidiana mesmo) do que a literatura portuguesa escrita. Da mesma forma, tradições populares do Nordeste brasileiro, que são, por vezes, versões crioulas de estórias e lendas ibéricas, ou europeias, vinham também com os ‘brasileiros’ para cá, mais numerosas provavelmente que os livros no porão. O romanceiro de Garrett, sobretudo por influência de uma velha criada pernambucana, realizará várias vezes uma síntese entre as tradições orais portuguesas e a sua versão brasileira (na qual se incluíam fragmentos de culturas africanas). É daí que extrairemos termos de comparação mais úteis para, junto com outros elementos, entendermos, por exemplo, estórias populares nossas onde aparece um espelho mágico para dizer quem é a mais bela, estórias acolhidas e publicadas por Chatelain, sob informações e conselhos de Cordeiro da Mata.

Além da contribuição direta para o intercâmbio entre oralidades diversas nas vilas e pequenas cidades angolanas, o Romanceiro de Garrett serviu-nos como estímulo e sanção cultural (a posteriori) para o que o próprio Cordeiro da Mata pretendia: recolher as tradições locais, passá-las à tipografia e, por aí, divulgá-las no presente, conservá-las no futuro, cimentando assim um projeto nacional – como fazia Garrett com Portugal. Mesmo que só tenha lido esta edição, de 1875, o poeta do Quanza leu-a a tempo de ela exercer estímulo sobre si.

 

Outro aspeto coincide com preocupações expressas na ensaística de Almeida Garrett, já desde o controverso texto introdutório do Parnaso lusitano, antologia constante das fontes angolanas e brasileiras estudadas e cuja autoria foi também controversa[3]. As preocupações, que já referi parcialmente ao falar nos épicos brasileiros do corpus, estão relacionadas com o critério da cor local. A opinião de Garrett é a de que os poemas de cada país devem ter essa cor, ou seja, devem ser veículo de expressão para a realidade geográfica, a memória cultural e a contemporaneidade popular. Isso tornou-se canónico ao longo do Romantismo, foi seguido pela maioria dos românticos e ultrarromânticos lusófonos e veio tocar uma parte significativa da prosa ensaística e das recolhas efetuadas por Cordeiro da Mata, que não estava sozinho.

 

5) Duas edições de Versos: fábulas e folhas caídas – uma existente na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda e outra no Arquivo Histórico. O exemplar da antiga biblioteca da Câmara traz a assinatura do bibliófilo e professor Joaquim Eugénio de Salles Ferreira, como disse. Sobre Folhas caídas não será necessário falar agora, pois é a recolha lírica mais famosa do autor. Em resumo lembro somente que é também a mais romântica das coletâneas de versos que publicou, pesem embora as sombras de papel dos mitos clássicos e, quando facilitam as rimas, algumas inversões sintáticas. No caso, trata-se de um volume publicado em 1853; as Folhas caídas vieram a público nesse ano (em abril, com prefácio – do autor – de Janeiro, publicadas pela Bertrand – já “Viúva Bertrand & Filhos”), mas o exemplar em causa é o da segunda edição, incluído nas «Obras do Visconde de Almeida Garrett» (v. II) publicadas pela Imprensa Nacional portuguesa (Garrett, 1853).

 

6) Versos: lyrica – Fábulas e Folhas caídas (Garrett, 1869); trata-se de uma reedição do título anterior e na mesma coleção. O exemplar foi comprado por Alfredo Troni no mesmo dia da 5.ª ed. de D.ª Branca. Troni, como no exemplar de D.ª Branca, localiza-se em “L.ª”, ou seja, Luanda.

 

7) Discursos parlamentares. Trata-se da edição de 1871, das Obras completas do autor, saída em Lisboa na Imprensa Nacional (Garrett, 1871). O exemplar encontra-se na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda e não tem qualquer assinatura ou carimbo.

 

8) Finalmente, a 1.ª edição das Obras, pela Imprensa Nacional portuguesa, com todos os títulos publicados a partir de 1845.

 

9) A Biblioteca do Governo Provincial de Luanda guarda ainda uma Lírica de João Mínimo impressa em Londres em 1829 (reunindo poemas de 1815 a 1823), bem como as Flores sem fruto de 1845 (Garrett, 1845).

Sobre Garrett há bibliografia crítica suficiente para que me abstenha, por agora, de mais comentários. Apenas umas notas específicas para ressituar:

 

1)   A relação de Garrett com João Mínimo é no mínimo ambivalente. Um seu amigo, Duarte Lessa, escrevendo-lhe de Liverpool a 11 de Maio de 1829, trata-o pelo poetónimo (Honório, 2000 p. 79). O João Mínimo que ele tanto ironiza na nota introdutória (e com tanta graça que ainda hoje nos faz rir) é o próprio Garrett enquanto leitor do grego e do latim, dos clássicos gregos e latinos e admirador convicto das melhores obras do neoclassicismo. Isto acentua o que digo no ponto seguinte quanto à sua moderação estética.

2)   A influência de Rousseau, Chateaubriand e Lamartine sobre ele, que vem confirmar o espetro bibliográfico estudado para o período de formação do romantismo lusófono e respetiva moderação estética (Vieira, 1991: 76). Isso mesmo o próprio Garrett corporiza logo de início (Machado, 1986: 27), citando tanto Horácio e Virgílio quanto Schiller, Byron ou Lamartine. Bulhão Pato, referindo-se às preferências do poeta, menciona “Shakespeare, Schiller, Goëthe. Acima de todos Shakespeare; como Lord Macaulay, Garrett julgava-o o primeiro poeta do mundo, depois de Homero.” (Pato, 1877 p. 56). Ora Shakespeare, manipulando com as suas peças uma psicologia emotiva instável e trágica, fatalista muitas vezes, apresentava-se como síntese entre a sensibilidade romântica e a forma clássica, uma síntese que talvez Garrett tenha buscado em alguns momentos da vida. Essa percepção (da contemporaneidade afetiva de alguns escritores clássicos, iluministas e neoclássicos europeus) conjugava-se com a sua própria vida. A propósito da influência de Rousseau, vale a pena mencionar um episódio aparentemente paralelo: foi através de notas colocadas a uma edição da Nova Heloísa que Almeida Garrett iniciou a sua relação com a jovem Adelaide, tão polémica e tão forte entre os dois (Pato, 1894 pp. 66-67); o processo foi mimetizado e reformulado por Pedro Félix Machado em Scenas d’África. Justamente a sofrida relação de Heloísa e Abelardo representou para os românticos o tópico do amor profundo, imorredouro e esmagado pelas convenções. A apropriação dos clássicos fazia, mesmo assim, parte da moderação do Romantismo e Garrett constituiu eloquente exemplo. Outro fator importante nessa moderação estética foi o próprio método de trabalho de Garrett, em tudo oposto ao mito genial do romântico: “ninguém era mais cuidadoso e demorado em rever, corrigir, alterar, limar, polir as suas obras.” (Pato, 1877 p. 57)

3)   A já referida crítica à voracidade colonial, exarada várias vezes no que ao Brasil se refere, por exemplo nesta passagem: “...colonos só diligentes em explorar as entranhas da terra por haver, o fatal abandono tão longos anos retardou a prosperidade da América meridional...” (Vieira, 1991: 78). Estas considerações, incluindo na compreensão do papel da agricultura para o desenvolvimento, não ficaram longe das que propôs o nosso Joaquim António de Carvalho e Menezes, em e para Angola.

4)   A sua fascinação pelo exótico, o mito (rousseauniano) da natureza selvagem (neste caso quer dizer idílica) não corrompida pelo homem urbano europeu, que o leva a aconselhar (por exemplo os épicos brasileiros) a colocarem cada vez mais essa natureza nos seus poemas. Esta fascinação manteve-se em todo o Portugal no século XIX e levou os editores do Almanach de lembranças (um setor populista do ultrarromantismo lusitano) a estimularem a criação de poemas incluindo aspetos locais, quer linguísticos, quer etnográficos, quer paisagísticos.

5)   A afirmação, no prefácio das Flores sem fruto, de que havia feito, “quando não devia […] prosas em anos de versos” (Garrett, 1845 p. 6), título que mais tarde aproveitou Camilo Castelo Branco em Portugal para fazer uma das suas hilariantes e instrutivas novelas, mas que também Cordeiro da Mata rentabilizou em Angola. Falo disso mais à frente.

6)   Terá começado a circular muito cedo no Atlântico lusófono a sua obra. Data de 1830 um pedido do Maranhão, enviado a Duarte Lessa em Liverpool, para que remetam vários livros de Garrett (Honório, 2000 pp. 80-81). O anúncio mais antigo no Diário de Pernambuco é, no entanto, de 1840. Passados, portanto, 10 anos – o que reforça a desconfortável sensação de desfasamento entre o circuito comercial e as leituras do escol intelectual.

7)   António Gonçalves Dias o leu com atenção, realçando uma virtude que se realizou nas Folhas caídas e só parcialmente nos restantes livros (Dias, 1964 p. 381):

Para dizer o que hoje se passa, para explicar as idéias do século, os sentimentos desta civilização, será preciso dar novo jeito à frase antiga, e é esse o grande merecimento do Garrett.



                                                                *



Mas não foi só a geração de Cordeiro da Mata que leu Garrett. Incluí nesta pesquisa o primeiro dos nossos poetas a publicar em livro. Maia Ferreira teria lido, ainda no período de formação, com atenção e gosto, Almeida Garrett – em particular a lírica. A linguagem antiquada de Maia Ferreira, com alguns pecadilhos de arcaísmo e pontilhada de inversões sintáticas, ele vai buscá-la em grande parte ao poeta lusitano e, sobretudo, em minha opinião, a Flores sem fruto. O léxico de ambos dá o mesmo sinal: “vergel”, “primor”, “candura”, “formosura” (fermoso(a)), “fel”, “deleite”, “luz funesta”, “fado”, “mago”, “anjo” (caído ou não, do céu ou de Deus), feitiço (enfeitiçar, enfeitiçado), etc.. É verdade que esse léxico estava banalizado já nos anos de 1847 a 1849, mas não se devem as coincidências apenas a lugares-comuns. Sejamos mais precisos. Garrett escreve:

 

Não sabe das flores 

Senão viço e cores;[4]

 

Maia Ferreira escreve:

 

És a flor em viço e cores.

 

E há muito mais coincidências destas. Por exemplo o primeiro verso de «O Anjo Caído», de Almeida Garrett, é o título de um poema de Maia Ferreira: “Era um anjo” (no caso do romântico português um anjo “de Deus” e no do nosso romântico era “do céo” – o que vai dar no mesmo). Os dois poemas seguem diferentes caminhos, até porque o poeta lusitano nos atira logo a seguir para “a seta que lhe acertava”, disparada do “arco traidor” – e, portanto, liga o poema ao mito de Eros, tão banalizado nesse tempo que os poetas até evitavam chamá-lo. Trata-se, também aí, de um anjo “que se perdera dos céus”. No caso do nosso poeta, a ambiência literária é já totalmente cristã e romântica, a representação do anjo sai de uma igreja para o mundo profano (sem se perder dos céus), o que leva à dúvida sobre se foi mesmo um anjo. Mas o nosso poeta parece ter ido matricular naquele livro a sua iniciativa amorosa e literária, posta no álbum “do Sr. F. V. da Cunha”.

 

Outro exemplo ainda: num poema importante para a definição identitária da lírica de Maia Ferreira (Ferreira, 1849 pp. 101-102), o primeiro verso da primeira estrofe e o primeiro da última estrofe são praticamente iguais:

 

De leite o mar – lá desponta

De leite o mar – eis desponta

 

A estrutura circular do poema responde, em parte, pela repetição. Porém agora nos interessa o que está lá escrito e a imagem de um mar de leite, que já pude explicar e é um fenómeno biológico relatado por marinheiros desde tempos antigos. Almeida Garrett é capaz de, numa das suas viagens marítimas, ter avistado o mesmo. Pelo menos é disso que nos fala, em tom muito coloquial, na parte X do longo poema «O Mar», das Flores sem fruto, logo no começo do primeiro verso também:

 

Como está leite o mar!

 

Não foi mais feliz que o seu discípulo Maia Ferreira, desta vez não. Mas atira-nos uma imagem (se é que ela se refere ao mesmo fenómeno) que o mais novo há de aproveitar para destacar as águas de uma praia que fazia a sinédoque da pátria angolana. O brilho e fascinação do mar de leite levam Garrett para os braços de papel da “meiga, bellissima Erycina” que “do espúmeo gérmen ressurgiu”; alguns anos depois, as musas neoclássicas tinham-se afastado para mares antigos e Maia Ferreira o que vê é uma terra promissora e bela, concreta, que aliás descreve. Cada poema segue, portanto, um caminho próprio, aquele mar de leite foi como centelha que despoletasse a explosão verbal a que chamavam os românticos inspiração. Mas é mais uma afinidade a registar entre o ‘pai’ Garrett e um dos seus ‘filhos’ – neste caso angolense.

 

Essas afinidades podem ser sistematicamente exploradas, conduzindo a uma interessante investigação sobre as produtivas intertextualizações dos dois autores. Agora não terei tempo nem espaço para desenvolver o assunto, que suscita cuidados redobrados, pois também muitos dos poetas por eles absorvidos eram os mesmos. Deixo, portanto, a sugestão.

 

Essas intertextualizações também se revelam nos pormenores habitualmente chamados técnicos. Maia Ferreira, por exemplo, cultiva a combinação entre versos mais longos e seus quebrados, à maneira de Garrett, numa prática a que só a liberdade métrica e a autenticidade rítmica dos modernistas dará asas e voos de condor. É verdade que estas caraterísticas estão presentes em Gonçalves de Magalhães, que provavelmente Maia Ferreira leu (pelo menos anunciava-se no Jornal do Comércio nos anos em que o poeta residia no Rio de Janeiro). Mas os ritmos são os de Garrett, mesmo de forma geral as soluções estróficas se aproximam do lírico português e dos paradigmas métricos de Gonçalves Dias, muito mais que de Gonçalves de Magalhães, ou de Alexandre Herculano.


Além destas relações intertextuais, é fácil explorar outras a partir de outros poemas de Maia Ferreira. Releia-se «Era um anjo!» (Espontaneidades..., 2ª ed., pp. 44-46) com «A uma menina» (Espontaneidades..., 2ª ed., pp. 46-49). Observe-se também o tratamento dado ao motivo dos olhos (em particular os olhos negros), um motivo central em «Os teus olhos / À Exmª Srª D. M. Rezende» (Ferreira, 2002 pp. 90-91) e «A uns olhos que eu vi» (Ferreira, 1849 pp. 111-112). Leia-se também a epígrafe de «A minha viagem / ao meu amigo António Pereira da Costa Jubim» (Ferreira, 2002 pp. 120-123).

 

Como disse, a bibliografia de Almeida Garrett começou a anunciar-se no Diário de Pernambuco a partir de 1840 (nove anos antes de saírem as Espontaneidades) e, nessa primeira fase, foi preponderante o seu teatro, bem como a Lírica de João Mínimo. Portanto o que ele tinha de mais arcádico.

 

As fontes estudadas, juntando agora os dois lados do Atlântico-sul, atestam a circulação de “pessas de theatro”, o “Teatro”, A Padeira de AljubarrotaD.ª Branca ou a conquista do Algarve (“obra posthuma de F. E.”), o Retrato de Vénus (publicado em 1821, com uma epígrafe do Paraíso Perdido de Milton), Camões, a Lírica de João Mínimo, as Flores sem fruto, as Folhas caídas, as Viagens na minha Terra, Mérope, Um Auto de Gil Vicente, o vol. II do Romanceiro (sobre “romances cavalheirescos medievais”), Da EducaçãoPortugal na Balança da EuropaDiscursos Parlamentares. Aqui nos deparamos com livros românticos e outros ainda muito pouco românticos. Mas, destes títulos, até 1850, circulavam só A Padeira de AljubarrotaCamõesD.ª BrancaDa Educação, a Lírica de João MínimoPortugal na Balança da EuropaRetrato de Vénus e o Teatro (portanto, provalvelmente, Mérope e Catão – que o autor foi buscar a Plutarco para ícone da luta pela liberdade).

 

Tudo indica, portanto, que, para o período inicialmente estudado (1827-1849), a listagem era representativa de um gosto literário ainda muito marcado pelos neoclássicos, até porque a obra de Garrett não tinha saído por inteiro nesse tempo. A Lírica de João Mínimo, o Retrato de Vénus, mesmo Camões e D.ª Branca são exemplos desse gosto – apesar de iniciarem o Romantismo em Portugal ‘oficialmente’. Fidelino de Figueiredo acrescenta as Fábulas e Contos (também constantes no corpus estudado, mas não na fase inicial), as tragédias, as Odes Anacreonticas, os Fragmentos – ao mesmo tempo retira daí CamõesD.ª Branca, e só considera “da primeira fase” o “1.º livro das Flores sem Fructo”. É uma verdade que a presença neoclássica se nota mais nesse primeiro livro, mas a disposição algo aleatória do conjunto faz com que surjam marcas românticas no primeiro livro e marcas neoclássicas a seguir a ele.

 

De qualquer modo, das afirmações de Fidelino se conclui que dão testemunho de arcadismo e romantismo as Flores sem fruto, que também aparecem no espólio de 1856 em Benguela. Elas estão cheias de inversões sintáticas violentas, que pelo menos hoje nos escandalizam, muitas delas de um mau gosto incompreensível em tão grande figura literária. Leia-se, por exemplo, “do pátrio meu Douro sombrio” (não se percebe que vantagem trouxe a deslocação de “meu” para depois de “pátrio”) (Garrett, 1845 p. 12), num poema (escrito em 1823) em que há versos profundamente românticos, aliás, sobretudo na parte final (Garrett, 1845 pp. 14-15).

 

É na introdução ao livro que Almeida Garrett escreve: “fiz, quando não devia, fiz prosas em anos de versos”. Em 1863, Camilo Castelo Branco publicou, talvez pensando nisso, o “romance” Annos de prosa (Branco, 1863). Entre nós, porém, sem deixar de se ler Camilo, deve-se ter ido beber à fonte e Cordeiro da Mata resolveu publicar uma série de crónicas a que deu, exatamente, o nome de «Prosas em Anos de Versos». As Flores sem fruto são menos românticas que as Folhas caídas. Misturam clássicos, ingleses, outras referências mais e menos românticas, mas requentam muito o sabor dos versos de Filinto e de outros, alguns com inversões artificiais do calibre das que lemos em Castilho. Não foram de uma grande ajuda para o romantismo lusófono, por isso também não foram tão marcantes como as Folhas caídas. Explicam, porém, esse mesmo romantismo no que diz respeito a Angola, onde os tons e sons da lira sem frutos se atardavam no último quartel do século XIX.

 

Camões tem sem dúvida condições para ser colocado no início do romantismo português, tal como D.ª Branca. Fidelino de Figueiredo aponta-nos as razões: no caso do Camões, a procura do “efeito sentimental da paisagem”, que a par da “exaltação do sentimento” e da “sinceridade do culto de Camões, a identidade de situações e o prestígio da lenda amorosa do épico”, reúnem as condições de receção que reforçaram o frouxo vigor lírico da mal conseguida obra. Escrever “em verso branco e em estâncias sem número fixo de versos” não sei se foi propriamente uma invenção do Camões de Garrett, ou contributo para o Romantismo (mais do que o de outros). É de notar, aliás, essa escolha em Filinto Elíseo e, por outro lado, de ressaltar que a evolução de Garrett foi no sentido contrário, da recuperação da rima, refrescada já pelo cancioneiro popular português.

 

Quanto a D.ª Branca, o crítico português realça, como para o Camões, “a irrupção nova do amor”, que “passou a ser considerado uma realidade, uma fatalidade irresistível”. Isso dá-lhes um romantismo temático, por assim dizer: tem motivos e temas, conteúdos, que são do Romantismo, tal como o Castilho dos primeiros livros românticos. Mas ainda ali o verso muito se ressente da formação arcádica do autor e, particularmente, da influência de Filinto Elíseo, mais que de Bocage – pese embora o que diz Lopes de Mendonça. O verso traz um ritmo seco, empertigado, parece ter engolido uma vassoura com vocabulário e imaginário camoniano nela pregados (o “dos vastos mares”), clássico e neoclássico (“a lamentosa Alcyone”), ou forçando uma sugestão popular e antiga (“a soidão melancólica das águas” – onde apenas a “melancholia” traz um eco moderno, talvez retinindo no nosso Maia Ferreira). Lopes de Mendonça corrige, ao transcrever, e fica realmente melhor assim: “a solidão melancólica das águas”, apesar de estragar a métrica e o ritmo versiculares para os formatar em prosa. Note-se que, no «Prólogo» da segunda edição, Garrett confessa que, relativamente à primeira, “do stylo tirei muitas voltas do arcaísmo forçado que sabiam à reação filintista em que estava a língua [dos escritores, naturalmente] quando primeiro o compus”.

 

O Romantismo era também, neste pensamento, uma Escola que se preocupava mais com o parecer autêntico e natural do que as anteriores. Qualquer coisa que o parnasiano Olavo Bilac resume poeticamente no soneto «A um Poeta», quiçá alusivo ao beneditino forçado Junqueira Freire, uma das referências do romantismo brasileiro:

 

Não se mostre na fábrica o suplício

Do mestre. E natural, o efeito agrade

Sem lembrar os andaimes do edifício:

Porque a Beleza, gêmea da Verdade

Arte pura, inimiga do artifício,

É a força e a graça na simplicidade.

 

O prólogo de Almeida Garrett, que nos faz deduzir o artificioso do Romantismo, vem datado de “Agosto, 1848”, pelo que essa nova D.ª Branca só entra em linha de conta na segunda metade do século XIX. Para lermos a lírica da geração de 1878 faz-nos falta, era uma espécie de manual para escritores românticos, já depurado das conspurcações contemporâneas à adolescência do poeta. Para lermos a poesia de Maia Ferreira devemos, no entanto, ater-nos à primeira edição. Tudo junto, mais as estrofes sem rima nem número fixo de versos, factos literários envolvidos pela dominância bibliográfica neoclássica, todos esses traços deram ao contributo inicial de Garrett uma leitura que resulta, grosso modo, no poeta luandense – também da adolescência e da juventude. Não esqueçamos que o seu livro foi publicado em 1849 ou 1850 (recorde-se também que as Folhas caídas só caem para o público em 1853). O de Garrett era já, também, um romantismo habilidoso (talvez mais hábil que habilidoso nas Folhas caídas), o mesmo que distingue os melhores poetas do que tenho chamado o ultrarromantismo lusófono (que é “ultrarromantismo” no conteúdo, que para parecer autêntico exagera, mas porque não o é não se renova, nem nos convence).

 

A colocação intermédia (entre Neoclassicismo e Romantismo) foi de resto referida por Herculano, o companheiro de Romantismo – também ele intermédio: “elas [as obras de Garrett, “como poeta”] começam o período de transição entre a velha Escola chamada clássica e a Escola, que denominaram romântica, e a que nós chamamos ideal, nacional e verdadeira”. Repare-se que Herculano, menos dado aos artifícios da ‘naturalidade’ que Almeida Garrett ou Castilho, fala na “Escola, que denominaram romântica”. Era uma “Escola”, que se opunha a outra. Se os dois mais destacados introdutores do Romantismo escreviam assim, porque não fariam o mesmo os seus mais novos?

 

A poesia de Almeida Garrett, segundo Lopes de Mendonça, vai progressivamente aproximando-o do “ideal do poeta moderno”. O que implica a síntese, não apenas entre clássico e romântico, mas a síntese entre “popular” e “filosófico” (Mendonça, 1855 p. 79) 

 

…nas suas obras ele combina ao mesmo tempo o elemento popular e o elemento filosófico da humanidade – e o problema da arte reside talvez nessa ligação espontânea: a mocidade gravita irresistivelmente nesse feliz impulso que há de fundamentar d’uma vez a poesia nacional

 

Esta lição de Lopes de Mendonça parece, mais uma vez, ter sido lida e acatada pelos poetas do Jornal de Loanda. Não recordo só Alfredo Troni escrevendo a Nga mutúri, nem Pedro Félix Machado as Scenas d’África. Recordo sobretudo a lírica bilingue de J. E. da Cruz Toulson, J. D. Cordeiro da Mata e alguns outros. Se ela nem sempre nos aproximou de qualquer reflexão filosófica sobre a humanidade, foi pelo menos uma séria e geralmente conseguida tentativa de aproximação ao popular e, pressupunha-se, ao nacional.

 

Um apontamento, para rematar estas notas um tanto aleatórias, agora sobre intertextualizações de Cordeiro da Mata com a obra de Garrett. No poema «Zelos», o nosso autor escreve (Matta, 2001 p. 149)

Galerno vento lhe corre

agora no infindo espaço.

A expressão “galerno vento” (vento brando, por isso agradável), que parece neoclássica, não é tão comum como podíamos supor – embora a encontremos na lusografia do século XIX. Almeida Garrett usa-a por duas vezes na sua poesia, embora com a acepção própria, ou inicial, ou denotativa (vento brando vindo de nordeste) – uma delas em O chaveco liberal, em 1829 (Garrett, 1829). 

 

A acepção em que a usa Cordeiro da Mata aparece no vol. 8 da Bibliotheca familiar e recreativa (D., 1841), num poema dedicado pelo poeta português a “hum amigo / a respeito de outro, que se queixava de não ser contemplado nos despachos sendo fidalgo”. Também aqui a lírica de Almeida Garrett fazia a transição entre as duas escolas (neoclássica e romântica), usando Cordeiro da Mata a acepção mais tardia, mais próxima do seu tempo – julgo.

 

A presença de Garrett no romantismo português representa, à sua maneira e como acabamos de ver, também uma parte da herança clássica e neoclássica. As leituras que certos retóricos e críticos franceses faziam dessa herança cultural era idêntica. Ouvia-se nos grandes oradores antigos perorar um espírito vivo, critério a partir do qual uns eram mais elogiados que outros. Transfiguravam-se neles as discussões políticas, partidárias e filosóficas da época. Foi o que fez, assumidamente, o Visconde no Catão:

Eu tinha feito o meu primeiro estudo sobre o homem antigo na antiga sociedade: pu-lo no expirar da velha liberdade romana, e no primeiro nascer do absolutismo novo, ou que deu molde a todos os absolutismos modernos, o que vale o mesmo. Dei-lhe as formas dramáticas, é a tragédia de Catão.

Aqui se continha uma identificação contemporânea, de caráter político, pela crítica aos “absolutismos modernos, o que vale o mesmo”. Catão já tinha sido classificado por Salústio como a antítese de Júlio César (que, numa visão empenhada, era benévolo, beneficente, misericordioso, sendo Catão – o representante da “velha liberdade romana” em Garrett - dado como austero, íntegro e impiedoso no cumprimento das Leis). Entre Salústio e Garrett havia “versões setecentistas portuguesas do Cato de Addison”, às quais Lola Geraldes Xavier e José Baptista de Sousa ligaram diretamente o Catão de Almeida Garrett, como já o fizera Lopes de Mendonça nas Memórias da literatura contemporânea (Mendonça, 1855 p. 80). Fidelino de Figueiredo fala ainda na obra de Raynouard como antecedente e associa a feitura do Catão ao cerco do Porto. Levada à cena em Plymouth (onde Alexandre Herculano escreveu o poema «Deus»), em pleno fervor liberal e numa estratégia preciosa de retórica política, a peça misturava também formalmente os traços românticos e clássicos.

 

Independentemente de o seu romantismo ser sincero, não se livra do jogo de influências e, quando o menciona, mostra mesmo alguma saturação do ‘ismo’. É o que o leva a escrever, no Camões: “não sou clássico nem romântico” e a seguir as suas “ideias, boas ou más”, sem procurar converter os outros, ou ser por eles convertido. O que se confirma por estas citações:

[Byron] que tão ridiculamente aqui macaqueiam hoje os Franceses

Precisa [quem quiser escrever a grande obra da Inês de Castro], é verdade, ser um Shakespeare ou um Schiller; sobretudo precisa esquecer todos os exemplares clássicos e românticos, não querer fazer à Racine ou à Vítor Hugo, à maneira deste grego ou daqueloutro latino ou destoutro inglês, e criar-se a si, para o assunto. O que principalmente falta é esta resolução.

Estas palavras suscitam duas contradições interessantes e uma dualidade sintomática. A dualidade é entre o “grego”, o “latino”, de um lado, e o “inglês” de outro.

 

A primeira contradição, interna, é a de se dizer que é preciso ser Shakespeare ou Schiller para pegar no assunto, ao mesmo tempo em que, logo a seguir, se critica o escrever “à maneira de”. A contradição é aparente, na medida em que é preciso ser “um Schiller” e não escrever “como Schiller”. É a defesa romântica da inspiração pessoal ou do génio, feita em muitos outros momentos e que possui várias vertentes também. Por exemplo a que defende que era preciso ter um génio extraordinário para igualar Byron. Por outro exemplo, a que leva à impugnação das regras, que afinal eram respeitadas mas de uma nova maneira.

 

É o caso do prefácio do autor ao Camões (1825), atrás citado: “porém declaro desde já que não olhei a regras nem a princípios, que não consultei Horácio nem Aristóteles, mas fui insensivelmente depós o coração e os sentimentos da natureza, que não pelos cálculos de arte e operações combinadas do espírito”. Também exemplar é o prefácio do autor (em 1843) às Flores sem fruto, quando carateriza a poesia: “isto porém que nasce espontâneo d’alma, que vem, como ejaculação involuntária de dentro, quando transborda o coração de júbilo, ou de pena, ou de admiração; isto que é o falar do homem para Deus n’aquelas frases incoerentes, inanalizáveis pelas gramáticas humanas, porque são reminiscência da língua dos anjos, que ele soube antes de nascer; isto que se intoa e se canta no coração, antes e muito mais belo do que o repita a língua”. Por isso dele se diz também que “a vida de um poeta há de sempre ter capítulos misteriosos, transições inexplicáveis e inesperadas; a filiação de suas ideias e de seus sentimentos é quasi sempre cryptogâmica”. No seu próprio prefácio às Folhas caídas defende que “o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossível” e assume que “as presentes Folhas caídas representam o estado d’alma do poeta nas variadas, incertas e vacilantes oscilações do espírito que, tendendo ao seu fim único, a posse do Ideal, ora pensa tê-lo alcançado, ora estar a ponto de chegar a ele – ora ri amargamente porque reconhece o seu ingano – ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade vã”.

 

Note-se que ele escreve que a poesia “representa”, não escreve “cria”. A poesia, para os românticos, é ainda um reflexo. Ela reflete, porém, “o estado d’alma do poeta” em busca do ideal, é como um espelho do seu interior momentâneo e do percurso inquiritivo de uma vida própria de anjos caídos.

 

Essa ideia, que se tornou comum e levou a confundir subjetividade com lírica e vida particular, entra em contradição com outras de outros livros, por exemplo quando a poesia é comparada a uma ninfa (no «Hino à Poesia»), ou com os arcaísmos forçados. No «Prólogo da 2.ª edição» de D.ª Branca ele desdiz o mito romântico da espontaneidade, embora mantenha o da harmonia com a natureza, que era já neoclássico. Escreve: “puz-me a reler [“no campo”] a Dona Branca, marcando as incorreções do stylo e as criancices de conceito que lhe fui achando; e vi que [...] era preciso revolvê-la de alto a baixo”. “O que hoje se publica”, na segunda edição, é isso. Após o trabalho de correção e aperfeiçoamento, “o enredo ficou mais claro, e os seus episódios mais ligados.” Como já transcrevi, “do stylo tirei muitas voltas do arcaísmo forçado que sabiam à reação filintista em que estava a língua [dos escritores digo eu] quando primeiro o compus”. O arcaísmo linguístico, associado por Garrett em 1848 à “reação filintista” e que também marcou soberanamente Alexandre Herculano, foi o que se aparou, por se achar forçado. Mas é estranho que o forçado seja natural o suficiente para só o percebermos depois… De qualquer modo, se isso implicou uma aproximação a parte significativa da linguagem literária romântica, ela foi realizada após a saída da primeira edição, a que se diz marcar o início do movimento em Portugal. O início era ainda “filintista”. Como diz no prefácio ao Camões (de 1825), não era “clássico nem romântico”…

 

Também se contradiz em muitos outros lugares, por exemplo quando afirma, no Catão:

O estudo do homem é o estudo deste século, a sua anatomia e fisiologia moral as ciências mais buscadas pelas nossas necessidades atuais [.../...] revesti-los [“os factos do homem”] das formas mais populares e derramar assim pelas nações um ensino fácil, uma instrução intelectual e moral que, sem aparato de sermão ou preleção, surpreenda os ânimos e os corações da multidão, no meio de seus próprios passatempos – a missão do literato, do poeta.

A defesa da função didática da poesia, que o liberalismo (pelo menos na altura) refundiu mas sobretudo prolongou, era canónica já para clássicos e neoclássicos, passou pelos românticos e ganhou novo relevo com o Realismo, o Naturalismo, a arte ‘empenhada’. Ela parece, porém, contradizer a teoria do génio que nos toma e nos torna “um Shakespeare” sem que escrevamos como ele.

 

A função didática da poesia articula-se com a função política do poeta, enquanto nacionalista. Ela vem exposta estrategicamente no Romanceiro, de que temos exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. O exemplar faz parte das obras completas editadas pela IN e não tem assinaturas, apenas os carimbos da “Biblioteca Municipal de Loanda” (com o). Na «Introdução» do autor, ele assume que o seu “ofício” é 

 

popularizar o estudo da nossa literatura primitiva, dos seus documentos mais antigos e mais originais, para dirigir a revolução literária que se declarou no país, mostrando aos novos ingenhos que estão em suas fileiras os tipos verdadeiros da nacionalidade que procuram, e que em nós mesmos, não entre os estrangeiros, se devem encontrar. 

 

Entende-se como tais lições calavam fundo, mutatis mutandis, na alma angolense de Cordeiro da Mata e seus companheiros…

 

É por aí mais marcado o romantismo de Garrett e é esse romantismo nacionalista, nativista, que nos influencia até muito mais tarde. No prefácio à Adozinda e ao «Bernal Francês», Garrett mostra-se farto de “Olimpos e Gnidos”, indo por isso mais atrás, buscar “fadas e génios, encantos e duendes”, o que implica “outro modo de ver, de sentir, de pintar, mais livre, mais excêntrico, mais de fantasia, mais irregular, porém em muitas coisas mais natural”. A poesia romântica era, paradoxalmente, vista como “a nossa própria, que não herdámos de Gregos nem de Romanos, nem imitámos de ninguém mas que nós modernos, criámos” ressuscitando as “antigas galas”, porém “melhor talhadas”, com as “feições primeiras [...] mais compostas”. Ou seja: polidas.

 

Lembrando-se da espontaneidade romântica, sublinha que o trabalho feito sobre o antigo não tornou essa poesia “menos natural nem menos nacional, porém muito mais amável e encantadora”. Também, na «Introdução» a Um Auto de Gil Vicente, postula a construção de um teatro nacional a partir das obras de Gil Vicente e Bernardim Ribeiro (de onde aproveitava a “parte íntima”), Garcia de Resende (“parte material e da forma”) – todos escritores anteriores ao triunfo do Renascimento, embora para ele de alguma forma tenham contribuído.

 

Além de estimular por este seu nacionalismo romântico, traduzido para os respetivos lugares por poetas de outros países, Almeida Garrett ocupava certamente um território especial no afeto literário de muitos angolenses e brasileiros. Ele foi um defensor ativo da abolição da escravatura, como lembrei já, e dos direitos iguais para os libertos e os homens livres (defendeu isso, por exemplo, no Conselho Ultramarino). Teve como secretário F. Gomes de Amorim, que o informava sobre a vida no Brasil, dos emigrantes escravizados e dos escravos de raiz, ou dos africanos, e teve em Angola um particular amigo, Teixeira de Vasconcelos, uma figura que obriga a destacar novo parágrafo.

 

 

António Augusto Teixeira de Vasconcelos (1816-1878), que não sei se foi ascendente ou familiar do poeta português Teixeira de Pascoaes (não figura nas genealogias do homem de Amarante, a que tive acesso em rede), foi jornalista e fundador de jornais muito temido em Lisboa. Foi também militar e político, miguelista e progressista ao mesmo tempo, escritor exímio, formando-se em Direito em Coimbra em 1844, junto ao Mondego se entregando às Musas com o grupo do Trovador de João de Lemos, Gonçalves Dias e outros (Pato, 1877 pp. 45-46).

 

Em face das dificuldades económicas decorrentes do seu envolvimento numa revolta no Porto, sua cidade natal (Silva, 1867 p. 88), acabou montando banca de advogado em Luanda, para onde partiu em 1850. Em Luanda se tornou personalidade conhecida, liberal, endinheirada e gastadora, opondo-se muitas vezes ao Governador-geral. Poucos meses depois de chegar elegeu-se Presidente da Câmara Municipal, em oposição ao candidato governamental. O exercício do cargo permitiu-lhe descobrir muitas irregularidades oficiais relacionadas com o tráfico de escravos, que denunciou, pois era abolicionista convicto e, nesse sentido aliás, fez o famoso elogio fúnebre do Governador Pedro Alexandrino da Cunha (que não chegou a conhecer), uma extraordinária peça de oratória, proferida em Luanda, escrita sem data, mas muito provavelmente em 1850 (ano da morte do Governador). O Governador-geral de então, muito diferente de Pedro Alexandrino, convenceu-o de que o chamaram à Corte, em Lisboa e, com isso, logrou que partisse para Lisboa não regressando mais a Angola, apesar de ter desmontado publicamente essa tramóia. A experiência angolana foi relatada nas páginas de A revolução de Setembro – órgão no qual colaboraram Lopes de Mendonça, João d’Aboim e vários outros. Publicou em Lisboa o folheto Carta acerca do tráfico de escravos na Província de Angola, sendo aparentemente a carta dirigida ao Ministro da Marinha e ao Secretário de Estado do Ultramar. Depois teve uma vida recheada de sucessos, brilhantismo e polemismo, quer em Paris, quer em Lisboa.

 

Jornal do Povo noticiava, em 11.3.1854, que o causídico faria sair “uma obra com o titulo - Tres annos em Africa”, da qual se esperava, por “excerptos publicados na Revolução de Setembro”, que trouxesse contributo valioso aos “melhoramentos das nossas colonias d'Africa”. Não tive mais notícia da obra, portanto não sei se terá chegado a vir a público, ou se mudou de título entretanto.

 

Muito com base nas informações de Teixeira de Vasconcelos (e nas do seu secretário Gomes de Amorim) terá Garrett inspirado a redação de Organização e Regimento da Administração da Justiça nas Províncias de Angola, São Tomé e Príncipe e suas Dependências (de 1852), para o qual escreveu um Relatório também. Para além disso revelou um conhecimento razoável acerca do Brasil (onde morou um seu antepassado, de apelido Leitão), conviveu com muitos brasileiros e leu a maior parte da literatura brasileira anterior. Censurou a Tomás António Gonzaga não ter aspirado a cenários mais “americanos” (como então se dizia), censurou Santa-Rita Durão por não ter ido mais longe no seu americanismo e elogiou Basílio da Gama por ter integrado com beleza e perfeição a paisagem brasileira na estrutura literária europeia, sem afetações e por nacionalismo.

 

Para nós, em Angola, isto é muito significativo. Maia Ferreira, apesar do pai, foi um defensor da abolição da escravatura (pelo menos até partir para os EUA) e terá, no Brasil, apanhado alguma coisa do nativismo de Garrett, reforçado pela proximidade de Gonçalves Dias e pela admiração que por ele provavelmente nutria. É significativo também porque vai enquadrar o trabalho de Cordeiro da Mata sobre a literatura oral e a sua postura antiesclavagista, bem como protonacionalista. Ele tentava justamente fazer o mesmo que Garrett (levantar as nossas “primitivas fontes poéticas”) e com intuito nacionalista. Não estava preocupado com o Romantismo já, com a “revolução literária”. Queria sim proporcionar, aos do seu tempo e aos posteriores, a par de uma patrologia e da sociologia urbana angolenses, um exemplo de “tipos verdadeiros da nacionalidade [literária...] que em nós mesmos, não entre os estrangeiros, se devem encontrar” (palavras de Garrett). Teriam sentido ambos (Cordeiro da Mata e Garrett, a par de Teixeira de Vasconcelos), apesar de todas as diferenças pessoais e contextuais, “que é preciso [...] estudar as nossas primitivas fontes poéticas” para construir uma literatura nacional.

 

Garrett deixou um lastro atuante na cultura portuguesa e o neogarrettismo veio comprovar exatamente isso, recordando-o como defensor da Liberdade, da Monarquia e da Pátria. Francisco Gomes de Amorim, poeta de que sobreviveram duas obras na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, veio testemunhar com uma dessas obras um momento crucial para o arranque do neogarrettismo. Em Luanda pude consultar o vol. II das Memórias biográficas de Garrett, escrito por quem lhe terá ouvido as últimas palavras e secretariado os últimos anos. O testemunho é vibrante, singelo, apaixonado, como os versos de Gomes de Amorim, conhecidos também pelos periódicos da altura, incluindo o Almanach de Lembranças. Mas de Gomes de Amorim falo mais adiante.

 

 

Outro caso típico foi, nessa altura, o de António Feliciano de Castilho (1800–1875). O seu nome faz a simetria com o de Bocage, pois ele (Mendonça, 1849 p. 33)

 

é o laço que une a literatura que expira à literatura que nasce. Este facto traduz-se fatalmente, em todas as suas composições; prosa ou verso, é sempre o mesmo.

 

Bocage prenuncia o romantismo, é um pré-romântico, "percursor [sic], para nós, da revolução literária [...], nascido vinte anos mais tarde, daria um Byron à península". Castilho retarda o classicismo, é um romântico classicizante. Curiosamente, o pai de Castilho era um admirador de Bocage (Castilho 1926, 50) e o filho parece que, desse muito novo, sofria a graciosa influência de Delille (Castilho 1926, 41). O bardo Castilho aparecia reiteradamente no Diário de Pernambuco, pel’A Noite do Castelo, pelos Ciúmes do Bardo, pelas Cartas de Eco a Narciso e outras obras ainda que (vamos ver) eram muito marcadas pelos primeiros anos de formação. Mas, em Angola, ainda no último lustro do século XIX Cordeiro da Mata, referindo-se a ele (século XIX), dizia que teve “por deus Castilho” e por “templo a poesia” (Matta, 2001).

 

A popularidade de Castilho é compreensível no contexto angolano e várias correlações a tornam mais compreensível ainda. Em Benguela há, na Biblioteca da antiga Câmara Municipal, um exemplar de Os fastos, na versão dele, impressa em 1862. Ainda em Benguela, encontramo-lo no espólio de um rico negociante e de um jovem médico, em 1855 e 1856 respetivamente. Sabemos que ele foi lido por quase todo o século e sobretudo no vagaroso declínio do chamado Ultrarromantismo. Um facto o liga mais particularmente a Maia Ferreira: um dos subscritores listados na 2.ª ed. das Cartas de Echo a Narciso era Adrião Acácio da Silveira Pinto, a quem o poeta luandense dedica um poema no início das Espontaneidades. Outra coincidência, de importância maior: Castilho colaborou no Panorama, que terá sido guia poético também para José da Silva Maia Ferreira no Rio de Janeiro e onde o mestre pontuava já sentando-se nos mais altos cadeirões. A popularidade do Almanach de Lembranças em toda a segunda metade do século XIX em Angola é outro dos sinais da influência que o poeta-pedagogo mantinha entre nós: o anuário estava ligado à sua direta família e ele era tido aí por Mestre. as ligações da família ao Brasil eram, de resto, já anteriores à própria existência do pedagogo. Um seu tio, Bernardo Barreto (que mais tarde passou a usar o nome Joaquim Barreto), tornou-se comerciante na Bahia, fazendo constantes viagens de e para Lisboa (Castilho 1926, 25).

 

Num prefácio publicado em 1943, João de Almeida Lucas, professor efetivo do Liceu de Braga, resume bem a vida literária de Castilho: “nasceu no meio renovador do neoclassicismo”, tendo subsistido graças ao alimento espiritual da “cultura de equilíbrio greco-latina”. Apesar disso, assistiu à vitória do Romantismo, ao qual aderiu, presenciando “– se, em parte, não a motivou – a queda estrondosa do arcadismo e do romantismo”. Nesse contexto, alcançou no seu tempo e no espaço lusófono “uma posição literária” de relevo. Por sua vez as críticas e a posição por assim dizer técnica por ele ocupada nessas décadas, no que à poesia diz respeito, foi Gonçalves Dias, a meu ver, em carta de 1864, quem melhor resumiu: “idolatria viciosa da frase, fotografando em duas palavras o caráter literário do cego Castilho” (Dias, 1964 p. 379).

 

António Feliciano de Castilho nasceu filho de um lente de Medicina de Coimbra, portanto num ambiente muito específico, talvez em dois ambientes específicos e conjugados, visto que o pai, quando ele veio ao mundo, morava em Lisboa, sendo inspetor dos hospitais a serviço da Corte. Apesar da profissão, o pai não conseguiu impedir que o filho cegasse de sarampo aos cinco ou seis anos (por um “violento contágio”) e a cegueira marcou-o por toda a vida. Por um lado, isso permitiu-lhe dedicar-se mais e com mais afinco aos estudos, tendo começado a metrificar em latim muito cedo, segundo parece. Não conseguiu, porém, aprender grego, apesar da sua vontade, pelo que não metrificou nessa língua. Aprendeu francês com um realista contrário a Bonaparte e exercia bem nessa língua, sendo que não gostava do inglês. O italiano, por outro lado, era uma paixão, tal como a respetiva literatura (Castilho 1926, 79-80). Da sua aprendizagem devemos realçar ainda os estudos de Filosofia, que foram feitos com um padre e pregador encomiástico, frei José de Almeida Drake, também Lente em Coimbra e sócio correspondente da Academia das Ciências, além de censor da Mesa de Dezembargo do Paço. Um amigo do pai, o Desembargador António Ribeiro dos Santos (1745-1818), também censor régio e quase criador da Biblioteca Nacional de Lisboa, que nas horas vagas pastoreava na Arcádia sob o nome de Elpino Duriense (nasceu em Massarelos, Porto), terá iniciado Castilho na carreira literária. Logo em seguida (logo após a sua estreia com um “epicédio” à memória real), José Agostinho de Macedo apadrinhava-o publicamente, louvava-o, contrapondo-o à enxovia bacoca, com tinta ainda a escorrer nas tipografias portuguesas da época. Sabe-se que houve correspondência entre os dois, correspondência que desapareceu do espólio de Castilho junto com outros papéis de juventude. José Agostinho de Macedo, popular na época apesar de polémico, terá decerto contribuído, pela sua crítica aos contemporâneos e depois aos românticos, para compreendermos as críticas de Castilho antepostas às Cartas de Echo e Narciso – onde Lopes de Mendonça adivinhava, com bondade, “o seguidor da escola bocagina” (Mendonça, 1849 p. 34). A postura dissidente de Macedo no seio do arcadismo coincidia com a postura inicial do poeta-pedagogo. Tal postura, claro, não punha em causa o essencial da formação neoclássica de ambos.

 

Quando, em 1821, publicou a fictícia correspondência amorosa dessas duas entidades míticas (Echo e Narciso), “no género pastoril, em verso solto” (que usavam muito os neoclássicos), J. A. de Macedo louva-o novamente. Como recorda Georges le Gentil, o livro é efetivamente o resultado da formação clássica e arcádica do autor, que é praticamente a mesma de quem o elogia.

 

A aproximação programática à natureza, com a correlativa rejeição de entidades meramente mitológicas, proposta por Castilho na introdução às Cartas de Echo e Narciso, para além de incoerente (como se vê logo pelo título, apesar de ser Eco a ninfa dos bosques), está próxima de José Agostinho de Macedo e não do Romantismo. A entusiasmada citação de Hüber e de Gessner (o “bom suíço” como lhe chamava Chénier (Chénier, 1907 p. 8), traduzido por Hüber para francês), feita por Castilho, permite estabelecer um ponto de contacto com o Romantismo, apesar de nas suas palavras ecoar ainda um não citado Buffon, de resto traduzido para português por um discípulo de Bocage[5]. Considerava Buffon que, para se conhecer bem a natureza, não bastava aprender as classificações das ciências, era preciso contemplá-la diretamente, na sua incalculável riqueza e perpétua atividade – ao que Chateaubriand foi muito atento. Castilho defendia o mesmo na poesia, quando apregoava a substituição das entidades mitológicas pela observação da própria natureza, observação de que viriam diretamente os versos. Por tal motivo queria seguir entusiasmado “sempre as suas pisadas [de Gessner]”, mostrando-se profundamente reconhecido ao tradutor por ter possibilitado o conhecimento de tão bela e natural escritura… Ao mesmo tempo contrapunha-lhe a corrompida (é a sua opinião, mas não só dele) poesia erótica dos latinos.

 

Neste passo, em direção ao Norte e ao Leste, afastava-se talvez de José Agostinho de Macedo. Isto apesar de, em outro momento, nos dizer que, em termos de arte e gosto, “um Godo não vale um romano; nem todos os gelos e todas as florestas da noite têm que ver com uma chapada de sol de Nápoles, com um prateamento do Coliseu pela suave lua da Cidade Eterna”. Oh pedras cinzas do Mediterrâneo! Oh cristãos belamente comidos pelas feras à sombra de Nero!... Isto, visto que nunca viu chapadas de sol em Nápoles, só podia ser literariamente assim...

 

O elogio à poesia natural e da natureza vem corroborado em seguida pela “Escolha de Poesias Alemãs”, feita e traduzida por Hüber para francês – língua na qual o poeta a leu. Recolhas idênticas fazem parte da listagem de livros a que chegou a investigação que fiz. No rico espólio bibliográfico deixado em Benguela em 1856 inclui-se um título muito parecido com este: “Cânticos Populares Antigos e Modernos de la Alemagne”. A transcrição do título, como se vê pelo seu bilinguismo, não é muito fiel e isso pode explicar diferenças. Uma série dedicada aos “Autores Alemães” era deixada, ainda em 1897 (ano da morte, não do inventário), por José de Anchieta em Caconda, mostrando que tais poetas foram lidos até ao fim do século XIX e nos sertões de Benguela. Em Portugal, José Gomes Monteiro traduziu e publicou os Ecos da lira teutónica ou tradução de algumas poesias dos poetas mais populares da Alemanha, que não sei se corresponde a algum dos exemplares das duas bibliotecas (Monteiro, 1848)[6]. A admiração de Castilho por eles (que mais tarde se alonga na tradução do Fausto de Goethe) encontra, portanto, sociedade em Angola.

 

Castilho e Macedo partilham ainda a junção de uma “poesia descritiva e filosófica” à “realidade física”, numa atitude que não seria muito rara na época, apesar das críticas dos dois. “Descritiva e filosófica” faz pensar nas descrições e na filosofia natural tão em voga durante o Iluminismo. A ligação à realidade “física” mantinha a literatura viva por via do conhecimento científico, seguro, reputado.

 

Neste quadro, não devemos admirar-nos das considerações tecidas por Duarte de Montalegre sobre as Cartas de Echo a Narciso e o Amor e Melancolia de Castilho. Admite que haja aí “tiradas menos clássicas”, porém ressoando falsas e mostrando o “cultor frio das musas”  (Montalegre, 1920). Como tão bem caracterizou Lopes de Mendonça, em 1849, a propósito dos Quadros históricos e, também, destas Cartas, em Castilho há (Mendonça, 1855 p. 34):

…um não sei que de factício, e de contrafeito no estylo, umas exaggerações de imagens, com um perfume do seiscentismo já pronunciado em certa ordem de escriptos do padre Bernardes.

Lopes de Mendonça toca, aí, num ponto fundamental: as “exagerações de imagens” vieram a caraterizar muitos ultrarromânticos – só que não os guiava a ‘agudeza do engenho’, queriam sim mostrar o excesso de sensibilidade.

 

Ora, se o segundo desses livros (Amor e melancolia) era apenas anunciado no Diário de Pernambuco uma vez, o primeiro foi sem dúvida a obra lírica mais popular do mestre da metrificação no período em estudo, quer em Angola quer no Recife. Por isso nos merece também uma atenção mais pormenorizada.

 

No Recife, num anúncio publicado a 13.3.1837 no Diário de PernambucoA Noite do Castelo era anunciada pelo seguinte postilhão: “de Castilho, autor das Cartas de Echo”. O sucesso desse livro neoclássico, traduzido até na Suécia (Anónimo, 1841), dá conta da fama do poeta logo na primeira fase de uma carreira literária longa. A Noite do Castelo Os Ciúmes do Bardo são as obras românticas iniciais de Castilho e o anúncio liga-as ao seu livro mais arcádico…

 

As Cartas estavam “dedicadas à mocidade académica da Universidade de Coimbra: seguidas de diferentes Peças, relativas ao mesmo objeto”. O pormenorizado e extenso título é sintomático logo pela extensão. A dedicatória à mocidade académica lembra (mais por oposição) um poema de Garrett, «Ao Corpo Académico». Pensei que o poema de Garrett fosse de 1832, ano em que se integrou nesse corpo, nos Açores, mas a lista de obras digitais do autor na Biblioteca Nacional de Lisboa indica a data de 1821. E é sintomático por dois motivos que essencialmente nos interessam aqui: uma epígrafe da «Ode à Liberdade» de Filinto Elíseo; um estilo ainda muito próximo do mestre e até, na parte mais polémica do poema, do de José Agostinho de Macedo, crítico feroz de liberais e românticos. Em algum momento, por estranha ironia da história, Garrett e Castilho estiveram próximos literariamente, mesmo sabendo-se que o poeta cego não era filintista e que o poema de Garrett antevia uma postura liberal e romântica sob a formalidade neoclássica.

 

Na segunda edição do livro de Castilho, a partir da p. 211, inclui-se um catálogo de subscritores. É aí que aparece o nome de Adrião Acácio da Silveira Pinto, a quem Maia Ferreira dedica um poema, no início das Espontaneidades da minha Alma, por ser ele governador (e só posteriormente haverá divergências entre os dois).

 

A obra de Castilho está cheia de marcas clássicas. Tem uma epígrafe de Séneca; na dedicatória à “mocidade académica”, a “cândida Minerva” aparece logo no primeiro verso; mais abaixo, as “castas Musas” espargem a sua virgindade seguidas por “Pallas”. Na página seguinte (ainda na «Dedicatória») lembra o seu professor de Latim, “do Lácio Pindo intérprete fecundo!” (lembrança onde a marca emotiva se reduz ao ponto de exclamação). Foi ele que, desconhecendo as consequências, excitou “n’alma” do nosso poeta “o amor das Musas da sábia Roma” e, pelos vistos, definitivamente. Mas a «Dedicatória» é mais intensa ainda no seu classicismo. Na p. 5 esvoaçam “os perfumados Zephyros mais brandos” aliviando-nos o ar... Na seguinte vem “Cytheréa animar quando respira”, com as “Graças”, que na “Castália fonte” de papiro nos refrescam a alma já um bocado constipada mas ainda longe da “caverna fatídica” (p. 7), ouvindo a “Aónia turba” da página oitava, o troar dos “mil Faunos” da nona e, claro, Narciso, Echo!

 

A epígrafe do prólogo é de novo em latim. Aí se elogia a bela e “mais antiga” poesia da Natureza, como ela simples e camprestre. Diz, se calhar pensando no P.e António Pereira, que a “Poesia Erótica dos Latinos” é corrupta moralmente e quase não fala nos campos, sendo que, ao fazê-lo, faz mal, ao contrário do que se passa na “Europa Moderna”, particularmente na Alemanha e na Suíça. A Escolha de poesias alemãs feita por Hüber elucidava-nos acerca disso e nela se destacava o já citado Salomon Gessner, cujas “pisadas” Castilho protestava “seguir sempre”. Gessner pode ser colocado, segundo João de Almeida Lucas, no “primeiro passo para o romantismo”, aproximando-se da natureza e de uma linguagem mais despida como a de José Agostinho de Macedo (porém, sem a deselegância deste chocarreiro frequentador do Chiado). Mas mesmo assim Castilho fala-nos é do Parnaso, da Castália, de Paphos, de Cythera e Vénus, Cupidos, as Graças (de novo), o velho “Baccho e as Ménades”, “Adónis”, a “Paphia Deusa”, enfim ... vê a “natureza” pifiamente pelas máscaras da mitologia clássica. Em Portugal acha que a “Musa de Quita” (refere-se ao poeta bacoco e professoral Domingos dos Reis Quita), se a fortuna lhe tivesse dado a mão, “poderia ter merecido um altar coroado”... mas o destino é assim, caprichoso, e felizmente o “campo” estava, pois, “intacto”, graças à caprichosa mão da Musa…

 

Desse estado por cultivar, apesar de “natural e verdadeiro” ser o belo, “em todos os tempos e lugares”, não o tiravam as Cartas de Echo e Narciso, escritas “no género pastoril, em verso solto”, mas com a realidade amarrada a figurinhas de papel ressequido e amarelado. O apelo aos jovens para que largassem “Jove e os Raios, Eolo e os ventos, Neptuno e as Tempestades [...] Acheronte”, as “Fúrias”, não é seguido pelo próprio proponente, que de resto as teme. Aliás a estória por ele contada cheira a pastores, aos bosques, mas sempre de papel, o mesmo das “perfeições de Adónis” ou da “Paphia Deosa”. Leia-se um último exemplo: 

 

Os Pastores attonitos de vêl-o,

Seu gado immenso espalharão á sombra,

Virão cantar na agreste flauta 

 

onde já soprava Sá de Miranda, para não falar de gregos e latinos de antanho. Perante eles e seu gado “sorri-se Vénus”, piedosa percebe que o nosso homem teme “os Faunos e os Satyros do bosque”... Finalmente, para que não deixe de soar entre silvas tão lindo sino, toda a primeira parte do poema, apesar da sua extensão, consegue ser minuciosamente escrita no tronco de uma árvore, onde Narciso vai lê-los, inadvertidamente, quando sai para a caça a pp. 29! Oh! Parnaso! Oh grosso tronco de arbórea frutiferal!...

 

A linguagem não podia deixar de ser afetada, portanto, infinitamente menos grácil e vernácula que a de Filinto Elíseo: “tu hes aos olhos meus de Amor o Nume”. Foi esta a linguagem que apanhou distraído José da Silva Maia Ferreira, felizmente em poucos versos e suportada pela forte circulação da obra no Brasil e em Angola nesse tempo, como também pela aura de mestre que desse nome descia vaporosamente ao rés do chão. Versos como: “não; voa aos braços de quem só te busca, / Pondo todo o seu bem n’um teu sorriso” a que “ouso elevar meus temerários votos” podiam ter sido escritos por Maia Ferreira, infelizmente. De maneira que não se chega a pressentir sequer “a ternura, o amor, o prazer, os campos e a felicidade” (quanta coisa boa toda junta!) sob essa tralha poeirenta, que pelo menos não surge nos versos de Maia Ferreira com nomes antigos gregos e latinos. Castilho já não vê propriamente o sorriso de Vénus, nem sabe se “mais tormentos não tem as Fúrias mesmas” e, no entanto, só fala delas. Maia Ferreira ainda viu e falou de senhoras reais, concretas, existentes, que amou na vida. A sua linguagem é que sofreu com estas influências. Segundo o prefaciador da edição da Livraria Clássica (João de Almeida Lucas), o livro de Castilho constituiu precisamente um dos últimos baluartes do neoclassicismo.

 

Só em 1836, com a publicação da Noite do Castelo (livro também encontrado em Benguela, no espólio de 1856) e de Os Ciúmes do Bardo (de que há um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (Castilho, 1868), em edição bilingue – português e italiano), Castilho passou para as hostes românticas mas, como havemos de ver, sem que se tivesse transformado em um romântico, antes adotando parcialmente o que supunha ser o programa do Romantismo.

 

A Noite do Castelo foi considerada, por Camilo Castelo Branco, romântica no “maior apuro do género. É a balada feudal de Baver-Lormian”. Parece contraditória, essa noção de “apuro”, de que nunca os melhores escritores sentimentais abdicaram. A par do apuro há qualquer coisa de fúnebre, tétrico, noturno, que permite esta associação com o Romantismo e com a qual se reapropria a Idade Média europeia, tomada agora como cronótopo ou lugar exótico. Diz Camilo que esses poemas “aprendiam-se de cor, eram imitados, e deles procede a enchente de solaus em que primorosamente se distinguiu António de Serpa” e que felizmente não irrompeu nas terras secas de Luanda, nem nas férteis margens do Quanza.

 

Mas, apesar das considerações de Camilo, a marca dos clássicos é inolvidável e o próprio poeta o sublinha.

 

Embora entrado tardiamente e pela porta dos fundos no Romantismo, Castilho vai logo diferenciando-se dos colegas através de lições e recados que remetem para a cultura clássica: “eles [os “poetas” românticos com que “esbarramos a cada canto”…] leem Vítor Hugo e Lamartine; eu tempero Vítor Hugo com Vergílio, e Lamartine com Horácio”. Tão temperado estava o clima que marcaria o sabor sentimental do seu e do romantismo dos que ele influenciou com essa gélida inscrição no mármore eterno. Como diria alguém mais tarde: radical, mas moderado...

 

Mesmo assim, não nos livrou dos dramalhões românticos franceses. A Noite do Castelo (“poema romântico em quatro cantos”) dedica-se ao ciúme, no português castiço e antigo de Castilho chamado “zelo”. Por tal razão cumpre com o primeiro dos três “carateres de zelosos”: “um amante que da injúria que lhe foi feita toma solene vingança”. Não sei como pode ser havida por solene tal vingança, mas há um ranço clássico nesta frase, que é do próprio poeta mas podia ser de Hugo. Em Os Ciúmes do Bardo cumpre-se com o segundo “caratere” dos “zelosos”: trata-se de “um que, depois de traído, foge sem deixar de amar, antes amando mais do que nunca, e com voluntária morte [leia-se: suicídio] põe remate em suas penas”. Este português, ao mesmo tempo castiço e com uma sintaxe classicizante, não é já apropriado ao espírito romântico, nem à temática e aos tópicos desenvolvidos – todos pouco dignos, não revelando grandeza, não cumprindo com os melhores ditames dos tratadistas grecolatinos, todos centrados no sentimento negativo do ciúme como se o Romantismo tivesse isso para nos dar de melhor. Aliás, vários dos seus discípulos elegeram o ciúme para o topo dos motivos amorosos e com ele fizeram dramas idênticos aos da vulgaridade teatral alimentada, sobretudo, pela França burguesa e popular.

 

Apesar da falta de nobreza dos sentimentos, trata-se aí de emoções exacerbadas e elas não podiam ser representadas com a sintaxe de Virgílio ou de Horácio, pediam mais veemência, a de Safo talvez (se não fosse elegante), mas bem mais a do imoral Catulo, muito autêntico se quiséssemos manter-nos no mesmo paradigma grecolatino. A sintaxe e a linguagem anterior, de forma geral, tornam-se uma desvantagem e acinzentam a viva emoção que se pretendia com frases de picareta, que infelizmente ressoam no nosso ultrarromantismo: “…esguia tocha / luz lhe verte agoireira” (p. 80); ou de cioba ondulante: “a flórea coroa, ao capitel cingida” (idem); ou simplesmente cinzeladas em cinzento matiz, ao “viver leais um do outro às cinzas” (p. 83); ou de garbo funéreo de “marmóreas pompas”. A escolha de variações lexicais classicizantes, como a opção por “automnal” em vez de “outonal”, reforça o caráter forçado destas propostas. Quando enxerta (é um verbo muito seu) o português castiço nesta sensaboria ‘clássica’, denota a mesma falha de sensibilidade artística e “desce a lamber, ondeando, o pavimento” (p. 80, ainda …para o que servia a língua!), sendo raras as expressões que parecem autênticas, sinceras, embora não especialmente belas, como “não vi lá ninguém, nem sei mais nada” (p. 81 – foi preciso mudar de página!).

 

O romantismo do livro vem-lhe pela adoção de uma intriga típica. Henrique, em Noite do Castelo, teria morrido na Terra Santa em combate e, após insistentes e infrutíferas buscas, Inês não encontrou rasto dele, acreditando no seu falecimento. Isto dá uma intriga muito próxima do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett, tipicamente romântica: na cerimónia do novo casamento de Inês aparece um cavaleiro fantasmagórico, vestido de negro, que mata o noivo, Adolfo (Garrett não mataria o noivo). Depois, Henrique e Inês resolvem o assunto com a decisão de entrar em clausura. Mas Inês não sabia que o noivo tinha já morrido e, ao saber, clama por vingança contra o assassino (que ela não sabia quem era), o que leva Henrique a matá-la com um punhal no peito, a fonte de todos estes males ao que parece. Mais violento e nórdico, mais exagerado, explicando mesmo assim o posterior Maria não me mates que sou tua mãe, estas sombras e terrores parecem forçados no livro. Com quanta maior naturalidade e portuguesia Almeida Garrett não escreveu o seu Frei Luís de Sousa! Ainda assim, parece o livro melhor que Os Ciúmes do Bardo, uma peça que consegue ser mais pateta, perdão, patética e menos convincente, menos popular também, encontrando-se apenas uma referência, no Arquivo Histórico Nacional de Luanda – o que não garante a sua circulação por ali no século XIX.

 

Ainda assim, a entrada de Castilho nos “novos arraiais” não se distinguiria da dos outros por ser mais clássica, mas por ele não trazer da cultura grecolatina o que ela tinha de mais romântico e por não ter visto no Romantismo a grandeza e nobreza de ideais que o animaram, como fizeram Villemain ou Chateaubriand. Na nova poesia, comparada com a antiga, ele encontra “porventura mais natureza” (daí que Hüber e Gessner lhe façam a ponte para o Romantismo), mas nos clássicos, que “amo e venero”, há “porventura mais arte”. Em “algumas das obras românticas” encontra “mais ousadia”, “mais desenvoltura e arrojo”, mas é nos clássicos que vê, não só “mais esmero e lustre”, também maior “delicadeza” (o que pensaria ele dos noturnos de Field e de Chopin?). Por isso enche A Noite do Castelo de perfeições e exageros que vão marcar o ultrarromantismo lusitano, por extensão parte do angolano. Mas, por isso também, a teatralidade de ambos, a sombra das tragédias clássicas acoplada às imitações esganiçadas dos ultrarromânticos, tornavam insuportavelmente artificiais os seus versos.

 

E, no entanto, Garrett conhecia também o teatro clássico, importante para o seu. Qual a diferença entre os dois? A grandeza e nobreza dos temas e tópicos em Garrett e a filtragem do classicismo pela vibração dos sentimentos e emoções, experimentados no recetor em que todo o escritor precisa de se distanciar de si próprio. Feito esse exercício, de sensibilidade através do outro, a memória neoclássica eleita resultará viva, apropriada ao horizonte afetivo de expetativas – o que se notará, sobretudo, nas Folhas caídas, o livro da sua maturidade lírica, onde supera tranquilamente Victor Hugo (um lírico francês ensurdecido por alexandrinos). Estamos, pois, perante uma diferença que não reside na aceitação da herança clássica de latinos e gregos, mas numa aplicação mais ou menos oportuna, sensível, apreciável, dessa herança, bem como numa apropriação mais ou menos nobre da nova poética. Até o João Mínimo, onde há qualquer coisa de Castilho, parece mais digno e esteticamente mais conseguido que o romantismo inicial do poeta da Rua da Torre, afetadamente nórdico apesar das chapadas de sol de Nápoles – que tinham sensivelmente a mesma temperatura que as de Lisboa, facto no qual ainda não se reparou.

 

Um aspeto importante, menos considerado no legado do cego Mestre, foi o das traduções e nisso esteve mais à altura do seu tempo, ainda que forçando sempre, forçando agora, por exemplo,Virgílio, Ovídio e Goethe a serem portugueses. Ele não só as dedicou aos antigos gregos e latinos (de Ovídio, as Metarmofoses e os Amores – a arte de amar; de Anacreonte a Lírica, de Virgílio as Geórgicas). Traduziu Shakespeare (Sonho de uma noite de Verão) e Goethe (o Fausto), mas também várias das comédias de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622-1673), referido numa composição de Cordeiro da Mata publicada em 1889 e de quem havia edições em português e francês, das Obras=Oeuvres, em espólios benguelenses de 1856 e 1899. Todas as traduções são posteriores ao prefácio de A Noite do Castelo que citei acima e talvez isso explique a diferença, pois até mesmo os clássicos, tirando o Virgílio das Geórgicas, estavam mais próximos do Romantismo do que tal prefácio. Traduziu antes a carta de Heloísa a Abeillard, de L.-S. Mercier (Mercier, 1820), o qual, por sua vez, a imitara de Pope, o reiniciador da série naqueles tempos.

 

Títulos idênticos anunciavam-se no Recife (tendo Rousseau por autor), entre 1825 e 1850, bem como Amor e melancolia (1828), que o poeta-pedagogo liga às famosas “cartas de dois amantes” ao dar-lhe o subtítulo de a novíssima Heloísa, que terá ido buscar a um Rousseau protorromântico (Rousseau, 1761), a um livro que levaria hoje o autor à prisão por estímulo ao assédio sexual de uma aluna pelo precetor, que na altura sofreu críticas e sarcasmos os mais variados (incluindo o arrasador de Voltaire), mas chegou a 1800 com mais de 70 edições e se manteve um sucesso absoluto no período romântico. Na verdade, La nouvelle Heloïse, de Rousseau, foi lida pelo menos até meio do século XIX no Brasil (Mançano, 2010), sendo obra típica do prerromantismo, tanto no que diz respeito à mistura de géneros e modos quanto no que diz respeito à história em si, quanto no que concerne à época de origem. Entretanto, esse título, separado, isolado, seja subscrito por Rousseau, seja por Castilho, não consta das fontes angolanas por mim consultadas, estando muito provavelmente incluído nas Oeuvres, de que sobrevivia, em 2002, o tomo IV nas estantes da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda (Rousseau, 1857).

 

Em 1836, data na qual a opção pelo Romantismo estaria definida, publica em Lisboa a sua tradução das Palavras dum crente de Lamennais (autor das preferências de Maia Ferreira), que Villemain diz ser politicamente discípulo de J. de Maîstre, bem como a Confissão de Amélia, de M.lle Delfina Gay, muito apreciada por José da Silva Maia Ferreira e pela coqueluche literária parisiense do seu tempo.

 

Castilho constitui, na verdade, uma tardia figura de transição do fim do Arcadismo para o Romantismo. Começa por ser, ainda, arcádico, para passar a ser romântico, mas ao contrário de Bocage: neste vemos cenários e representação de sentimentos que serão típicos do Romantismo (embora se avistassem já, frequentemente, nas suas margens anteriores em língua francesa, inglesa e alemã), naquele vemos as sombras do Arcadismo mantendo na medida o fogo frio dos espelhos quebrados. Por sua influência teve o Romantismo angolano muitas vezes um tom artificioso ou classicizante, ou pedagógico. A mistura de neoclassicismo arcádico e de romantismo literário do mestre da métrica também conformara formalmente alguns versos de Maia Ferreira, colega e amigo de discípulos de Castilho, e ainda de parte significativa da geração de 1878 em Angola, da qual sobressaem Cordeiro da Mata e Eduardo Neves na lírica, ambos colaboradores assíduos do Almanach de Lembranças.

 

Essa espécie de retorno ao Classicismo nem seria inédita na Europa. A diferença é que os seguidores de Castilho não foram tão vívidos nem tão hábeis nos seus versos quanto, por exemplo, Brahms em 1873, ao fazer as suas Variações sobre um tema de Joseph Haydn. Brahms é, precisamente, outro criador que não existiria sem os românticos e que no entanto acusam de os classicizar. De resto, o Parnasianismo irá, por uma via sem dúvida mais interessante e nada fastidiosa, recuperar o que havia a recuperar do Classicismo. Desse Parnasianismo nos falará, na mesma geração de 1878, a figura singular de Pedro Félix Machado, nada castilhiano e também nisso original para o meio (apesar de nomear o seu jornal, A semana, com um dos títulos de referência dos ultrarromânticos portugueses)[7]. Mas o sintagma foi no entanto e contemporaneamente o título de um jornal brasileiro de crítica ao Romantismo. 



 

De Simão José da Luz Soriano – médico, historiador e político liberal que nasceu, segundo ele próprio, a 8.9.1802 (m. 18.8.1891) – circulou por Benguela a História do cerco do Porto. Foi publicada em Lisboa, pela Imprensa Nacional, entre 1846 e 1849. Chegou a ser deputado por Angola.

 

É uma “obra colossal”, de que aparece uma edição em 2 volumes (a primeira, de 1846-1849) num espólio benguelense de 1855 (do conhecido e opulento comerciante José Luís da Silva Viana) e que pode ter sido enviada para Ombaka pelo próprio autor (Soriano, 1891 p. 435). Num espólio do ano seguinte aparece o que tudo indica ser a mesma edição (sem menção, no entanto, ao nome do autor) e pode se tratar do mesmo livro do ano anterior que mudou de mãos. Uma vez que levaram para lá muitos livros, é igualmente possível que não fossem o mesmo em ambos os espólios. A menção, no espólio de 1855, fala em Francisco José da Luz Soriano, mas trata-se mesmo de Simão José da Luz Soriano, que se tornou famoso como historiador das revoluções liberais, famoso e polémico, através de livros como este, História do cerco do Porto precedida de uma extensa noticia sobre as differentes phazes politicas da monarchia desde os mais antigos tempos até ao anno de 1820. Por Luanda tinham sido importados, para serem distribuídos como prémios escolares, quatro exemplares da mesma História do cerco do Porto em 1858 (Santos, 1973 p. 126).

 

A presença do título em Benguela tem uma explicação contextual, que darei a seguir. O autor promoveu, entre benguelenses, assinaturas prévias e houve pelo menos 60 enviadas da cidade (Soriano, 1891 p. 547). Recolha e envio correram por via do então Governador (amigo de Maia Ferreira), o Major Joaquim Luiz Bastos, que alguns comerciantes portugueses residentes, pouco depois, haviam de obrigar a sair, movidos por Francisco Tavares de Almeida e seus apaniguados. No âmbito das funções exercidas na Secretaria de Angola do Ministério da Marinha e Ultramar, Soriano diz ter concordado com a nomeação de Bastos, a quem se confessou afeiçoado e “posto que não deixasse de ponderar o inconveniente de ser o nomeado homem de cor tendo por outro lado a fama de honrado, e de grande inimigo dos que defraudavam a fazenda publica.” (Soriano, 1891 p. 543)

 

Foi este o título que deu mais polémica entre todos os do autor, mas o que cita Cordeiro da Mata publicou-se mais tarde (sem deixar de ser polémico também). A julgar pelo catálogo da Porbase (da BNL), Revelações da minha vida e memórias de alguns factos e homens meus contemporâneos saiu em Lisboa, do prelo da Tipografia Universal, em 1860, havendo uma reedição no Porto em 1891. Essa é uma das duas obras em que Luz Soriano aponta os erros da monarquia constitucional, prevertida por jogos de interesses, intrigas, corrupção sistemática, até pela manipulação de contactos maçónicos. Tendo nascido pobre, estudante da Casa Pia, Luz Soriano singrou na vida à custa de esforço próprio, pelo que a sua biografia interessava de certeza muito ao nosso poeta, quase autodidata. Por outro lado, a vida honesta e a seriedade com que tratava os assuntos de Angola terão criado muita afeição pela sua pessoa na então colónia, sobretudo entre os filhos do país.

 

O antigo menino da Casa Pia chegou a exilar-se em Inglaterra, veio para a Ilha Terceira, desembarcou no Porto e, portanto, acompanhou toda a Revolução Liberal, que repôs a legalidade e a liberdade em Portugal. Tendo estado no exílio e no combate com Garrett e muitos outros, que se tornaram figuras gradas do novo regime, não sendo um radical, as suas críticas representavam as desilusões dos liberais moderados da segunda metade do século. Luz Soriano chegou a simpatizar com os cabralistas e talvez esta leitura contribuísse para a perceção que teria Cordeiro da Mata da falência do regime monárquico liberal.

 

Luz Soriano foi “chefe da repartição de Angola”, como disse. Quem o investiu no cargo, quando Ministro da Marinha e Ultramar, chamava-se Joaquim José Falcão (1842-1846). Tratava-se de um oficial maçom, cabralista, que foi também Ministro da Fazenda do Marechal Saldanha e membro do Conselho de Estado. Luz Soriano permaneceu nesse cargo de outubro de 1842 a junho de 1851 (Soriano, 1891 p. 509), quando as intrigas, entre políticas e pessoais, levaram à sua demissão e à sua nomeação para as Cortes.

 

Ao relatar esse episódio da sua biografia nas Revelações, fez uma crítica directa, contundente, à colonização portuguesa de África, dizendo que Angola serviu desde sempre e só como fonte de escravos para a América (Soriano, 1891 p. 509). Procurando contrariar essa falha secular, Luz Soriano usou o cargo para promover a colonização portuguesa de Mossâmedes (como ao tempo se escrevia). À segunda Câmara daquela “colónia” (hoje Namibe) enviou, com ofício dirigido por si próprio em 28 de setembro de 1860, um exemplar da primeira edição deste livro citado por Cordeiro da Mata.

 

Curioso anotarmos, de passagem, como começou a povoação de Mossâmedes: não havendo, cronicamente, dinheiro para outras despesas, usaram-se 50 casais de escravos, apresados a um navio brasileiro que fazia tráfico ilícito, isto em 1844. Os casais foram tornados livres para o efeito. Um ano mais tarde (em setembro de 1845) usaram-se 40 dos degredados do navio Princeza Isabel para completarem a colonização e “fazerem parte da respectiva companhia de linha” (Soriano, 1891 pp. 412-413). Só a 23.5.1849 saíram de Pernambuco, no Tentativa feliz, cerca de 300 colonos portugueses (“de ambos os sexos”) do nordeste brasileiro para irem fundar em Mossâmedes (onde chegaram, todos, a 4.8.1849), uma “colónia agrícola”, apesar das condições agrestes. O nome de Luz Soriano estava, a partir de então, ligado à Angola do século XIX e também por isso havia de ser recordado.

 

É natural que, nas Memórias que citei, as passagens mais lidas fossem estas, que se iniciam com a crítica à colonização e narram os primórdios da colonização de Mossâmedes (Soriano, 1891 pp. 409-418). Mas não só. Luz Soriano viu-se envolvido na demissão do Governador de Benguela (1848-1852), Francisco Tavares de Almeida (1803-1879), acusado de vender ao Estado, por alto preço, mercadorias suas e de desviar dinheiro público, tendo-se conspurcado no tráfico de escravos também, segundo acusações britânicas (Soriano, 1891 p. 436; Almeida, 1852). Veio a ser vítima dessa atitude (que ele resume a ter deixado de defender a recondução de Tavares de Almeida), porque o ex-governador não descansou mais enquanto não tirou o autor do seu cargo na repartição de Angola (sustentado por uma "quadrilha. Entretanto, os muitos e bons amigos arranjados em Angola propuseram-no para as Cortes sob sugestão do próprio e foi eleito quase por unanimidade do respectivo colégio eleitoral. As experiências ali vividas e a que assistiu desiludiram-no ainda mais com o sistema liberal.

 

Luz Soriano também defendeu, como Deputado por Angola, a ocupação do Ambriz, argumentando com o prejuízo que a sua liberdade fazia aos cofres da Alfândega de Luanda (Soriano, 1891 pp. 536-537). Denunciou, no decorrer da sua “entrada nas Cortes” (1851), a ilícita subscrição anual de 8 contos de réis a favor do Governador-geral de Angola, o “montevideano” Visconde do Pinheiro (Soriano, 1891 pp. 538-540). Manteve, portanto, ao longo de vários anos, uma intervenção activa relacionada com a província e colónia que, apesar de ser em favor da colonização, representava uma corrente desenvolvimentista e de moralização da actividade colonial – o que era apreciado por alguns sectores locais, principalmente por filhos da terra, vítimas habituais dos abusos dos governadores e do seu desinteresse pelo desenvolvimento da colónia. A julgar pelas memórias que nos legou, suponho que a série dos “Anais Marítimos”, de 1840 a 1844, encontrada num espólio de Benguela de 1855, fosse distribuída na cidade a partir de alguma orientação dele.

 

A poesia de Luz Soriano, de que o próprio pouco fala, não terá tido nenhuma influência, nem qualquer espécie de interacção com a nossa.



 

Alexandre Herculano (1810-1877) figurava igualmente na bibliografia investigada, quer no Recife, quer em Luanda, quer em Benguela.

 

Nos Inventários orfanológicos de Benguela aparecem:

 

.“O Monasticon”, em 3 volumes., num espólio de 1855 (um díptico narrativo constituído por O monge de Cister e Eurico, o presbítero).

.“O Bobo”, na edição póstuma da Viúva Bertrand, de 1878 (exemplar incluído no espólio da Biblioteca Municipal de Benguela).

Em Luanda predominavam

 

.as Lendas e narrativas (a 6.ª ed., na Biblioteca do Governo Provincial e a 12.ª, no Arquivo Histórico).

.os “Opúsculos – Questões públicas”, numa edição de 1873 encontrada na Arquivo Histórico Nacional (as Questões constituem o tomo II dos Opúsculos, publicados a partir desse ano).

 

Vendiam-se e procuravam-se dele, no Recife, A harpa do Crente, com A voz do Profeta e as Questões públicas dos Opúsculos, obra para cuja importância Fidelino de Figueiredo chamara já a atenção.

A sexta edição das Lendas e narrativas, encontrada na antiga Biblioteca Municipal de Luanda, é sintomática para quem estude a circulação e uso da literatura na então colónia: no verso da penúltima folha, toda em branco, vemos o carimbo da “CML/Biblioteca” (ao fundo à esquerda) e, na parte de cima da página, em toda a largura, uma conta ou lista de produtos de mercearia (p. ex.: “duas latas de leite”). O exemplar é doado à biblioteca por alguém cuja assinatura não se percebe, mas importa que a doação foi feita em 7, 17 ou 27 de setembro de 1920. 

 

Também a nossa poesia denota a leitura de Alexandre Herculano em várias ocasiões. No famoso poema «Libelo a Portugal», publicado no Pharol do povo (n.º 9), em que o poeta pede ao “velhinho” a liberdade de Angola, há uma referência que eleva o historiador Herculano ao nível do poeta Camões, logo na segunda estrofe (Matta, 2001 p. 146):

 

De Camões o poema e de Herculano a história,

Tudo, ó egrégio velho, fala em tua glória.

 

No território que hoje é Angola, “Um Vimaranense” escrevia em memória de Alexandre Herculano um poema que publicou no Almanach de Lembranças para 1882 (p. 48). Aí é já do intelectual, historiador e político íntegro que se fala, íntegro defensor da verdade e da liberdade. Isto parece indiciar que Herculano teve, entre nós e nesse tempo, mais influência como historiador, pois mesmo as Lendas e narrativas exprimem a compreensão do historiador e vivem da sua pesquisa. Mas, curiosamente, nos anos investigados no Recife, era a poesia lírica dele que mais circulava, em especial A Harpa do Crente.

 

Precisamente, esse é um livro marcado ainda pela poética neoclássica – apesar de Herculano ser, no vocabulário e nas referências, o mais romântico dos iniciadores do movimento em Portugal. Para além de algum verso forçado, com remendos para manter a métrica ou provocar a rima (por exemplo no 4.º verso de «A Voz»: “das ondas a ardentia”), há várias inversões sintáticas de sabor latinizante, próprias de séculos passados. É o caso deste verso e meio:

 

Passa o vento os do pórtico da Igreja

Esculpidos umbraes

 

ou

 

– quem chore

do sofrimento o Herói existe ainda

 

O excerto pertence à série mais antiga, a inicial, sobre a Semana Santa, um “poema da minha mocidade” (escrito em 1829), dedicado ao Marquês de Resende (1790-1875, político e escritor liberal lusobrasileiro, único do título). Nele se nota a formação neoclássica do autor, cujo Romantismo o era mais pelos conteúdos e temas escolhidos (motivos cristãos antigos – destacadamente a Cruz, legado cultural dos “avós”; alguns traços breves de paisagens tétricas e ermas) e pelo vocabulário ‘lusitano’. Mas os critérios de composição vieram dos neoclássicos. Repare-se na métrica e no ritmo: decassílabos, heroicos em geral e sáficos em pontos muito precisos, definidos por conteúdos melancólicos. Investigue-se a rima: não existe (ao passo que no romantismo português ela domina largamente e também não existia em Filinto Elíseo).

 

Do poema seguinte se poderá dizer o mesmo, quer no que diz respeito aos temas, motivos e conteúdos (românticos), quer no que diz respeito ao ritmo dos versos (decassílabos predominantemente heroicos) e à ausência de rima, quer no que diz respeito às inversões latinizantes, como a seguinte: “sobre esta scena o sol verte em torrentes / da manhan o clarão”. Escrito em 1830, intitula-se «A Arrabida» e vem dedicado “a rodrigo da fonseca magalhães, ornamento da tribuna portugueza”. A escolha do tema e algumas intertextualizações nos remetem para o século XVI, um século XVI já tardio, é certo, caminhando para o Maneirismo, mas ainda renascentista. Frei Agostinho da Cruz é, neste contexto, um seguro termo de comparação e nos seus versos à Arrábida há mais frescura, mais vivacidade e naturalidade que nos de Alexandre Herculano. Que, no entanto, intertextualiza com Luís de Camões, aliás com muita da poesia clássica ou renascentista. E que, partindo do motivo «Arrábida», explora também uma das linhas temáticas que mais o caraterizam: a do distanciamento face ao vulgo e à cidade. Aparentemente não seria romântico, tal como vem tratado no poema. Mas há uma corrente no interior do Romantismo, sobretudo do francês, que é conservadora, que não confia no vulgo, se distancia do mundo e, mais conhecido cronótopo, rejeita a cidade, corrompida a vários níveis, incluindo o ambiental. É nesta linhagem conservadora (conservadora no sentido preciso que defini) que se filia «A Arrábida» e em grande parte o romantismo de Herculano, como (desconfio) o de alguns portugueses residentes em Angola (José Bernardo Ferrão, ao menos no fim da vida), sem dúvida insignificantes em face do vulto de Herculano, magro e seco mas nada peco.

 

A composição seguinte, «A Voz» (Leça da Palmeira, 1835), é a primeira que apresenta rima. Escrita em versos mais curtos, reunidos quatro a quatro, ganha vivacidade rítmica, apesar de algum vocabulário perro e uns – muito poucos – versos frouxos. Os versos, no entanto, não são tão populares quanto a mancha gráfica das estrofes faria supor. Na verdade são hexassílabos, ou seja, correspondem à primeira parte de um decassílabo heróico. Em todos os poemas, aliás, a ‘chave’ métrica e-ou rítmica tem base nas seis sílabas (decassílabos heroicos, eneassílabos e hexassílabos, por vezes combinados com os heroicos em estrofes de quatro versos). Estes hexassílabos apresentam um ritmo interno de 4’2, melhor dizendo, juntam cesura e acento na 4.ª sílaba. Isso é que lhes dá um ritmo vivo, bem marcado, dinâmico – longe, portanto, dos magnânimos versos longos dos outros poemas. Ainda assim aqui se repete a “Alcyone”, certamente avistada com seu ninho sobre as águas, ou entre as Plêiades do céu que V. Hugo viu em «Relligio»; repetem-se as estruturas frásicas com inversões forçadas também (“Mas voz soou ignota”). É a temática religiosa que vem lembrar, uma vez mais, Victor Hugo, Chateaubriand, enfim, o romantismo francês na sua vertente conservadora, diríamos hoje: neoconservadora. Uma temática repetida num poema de Cândido Furtado («Religião» que é uma livre imitação, precisamente, de V. Hugo, tratada em outro ponto deste livro).

 

Enquanto as Lendas e narrativas faziam escolhas temáticas, lexicais e estilísticas românticas, A harpa do Crente seguia uma pauta clássica. Ora, como vimos, foi justamente a prosa narrativa do historiador português que nós lemos nesse tempo. Logo, a mais próxima do Romantismo. Porque faixa de interesses de leitura? Desconheço, talvez a do exotismo realizando-se na representação da Idade Média europeia, que a tantas compras movia de W. Scott, V. Hugo e outros.

 

O volume II dos Opúsculos, existente no Arquivo Histórico Nacional em Luanda mas que terá circulado por toda esta geografia cultural, transcreve um texto seu de referência, que muito importa aos estudos literários. A peça chama-se «Da propriedade literaria» e mostra uma oratória enxuta, límpida, exigente. Ela faz, entre outras coisas, uma análise impiedosa da literatura dominante na época. Herculano ataca a ideia de “propriedade literária” por associá-la à mercantilização da literatura. O que suscita a polémica é justamente uma convenção com a França, que dominaria o mercado bibliográfico de então com produtos muito rentáveis e a quem, por isso, interessava (na perspetiva de Herculano) a proteção da propriedade literária. A importância que tem para nós, além da temática abordada, prende-se com os critérios valorativos que utiliza para distinguir as boas das más obras (boas ou más esteticamente falando).

 

Eles e elas inserem-se num conceito geral ainda clássico, onde se juntam “Pedro Nunes, a Leibnitz, a Newton, a Vico, a Brotero, a Kant”. O que lhe permite reforçar o critério da profundidade, medida pelo alcance gnoseológico e ético das obras de arte. Pelo contrário, com a proteção da propriedade literária os livros passariam a ter um valor-moeda indistinto face a outras mercadorias: “a lei de propriedade literária, ou antes a lei do envilecimento, que pendura a ideia no mercado entre o barril de manteiga e a sacca de algodão, essa o que produz em regra é os tais livros absurdos, frívolos, prejudiciais”. Aqui uma primeira articulação: os livros de poesia “entre o barril de manteiga e a sacca de algodão” era o cenário da circulação do livro em lugares recônditos e até menos recônditos da colónia de Angola e de vastas zonas do território brasileiro, mesmo do Portugal europeu, nas províncias sobretudo. No contexto em que o historiador o discute, o valor do que diz me parece justo; saltando, porém, para o nosso contexto, não fora precisamente essa exposição da “ideia no mercado” e não circulava literatura nenhuma em muitos lugares e entre a maioria dos leitores e leitoras. No meio dos “tais livros absurdos, frívolos, prejudiciais” vendiam-se títulos de poesia também, narrativas (incluindo muitas novelas) instrutivas apesar de tudo, e, como se sabe, as próprias Lendas e narrativas subscritas por um tal de Alexandre Herculano, herói das hostes liberais portuguesas. Em parte se gerava aqui uma tradição de crítica e distanciamento face ao facilitismo e ao mau gosto do público em geral, uma tradição que partilho – em parte. Em parte porque me parece natural (e, por tanto, inevitável) que o leitor ou comprador comuns não tenham o mesmo nível de exigência que um escritor ou leitor modelo. No entanto, eles criam no mercado o lastro do qual sobressai o mais apurado estro, bem como a leitura mais exigente e sensível. O lastro permite ao navio literário continuar a navegar equilibradamente e, portanto, levar os diamantes da poesia às especializadas sinapses dos cérebros mais desenvolvidos. Apesar da ironia, a que não resisto às vezes, enquanto leitor aspiro a colocar-me entre esses cérebros com sinapses iluminadas por descargas elétricas e químicas previdentes e, por isso, me distancio também de todas as meras simulações de arte para consumo instantâneo. Mas compreendo que existam e em que medida isso ajuda até a despertar vocações literárias ou, pelo menos, apetência por leituras, ao mesmo tempo em que sustenta o mercado editorial que permitiu a Herculano celebrizar-se.

 

Os livros dos “romancistas modernos” eram consequência, pelo menos em parte considerável, uma consequência da lei dos direitos de autor e edição, reforçando por sua via a má formação do gosto público, sustentada ainda pela entrega da “alma ao espírito immundo do Jornalismo”. Herculano junta no mesmo pacote “os Arlincourts, os de Kocks, os Balzacs, os Sues, os Dickens” – autores frequentes no corpus e realmente populares no século XIX. A associação entre a popularidade, a frivolidade, a imoralidade na literatura passava pelas curtíssimas biografias destes autores: “homens, cujos estudos se reduzem a correr os theatros, os bailes, as tabernas, os lupanares, a viajar comodamente [...], a adornar os vícios, a exaggerar as paixões, a trajar ridiculamente os afetos mais puros, a corromper a mocidade e as mulheres”. Estas críticas foram também comuns na época, mais talvez em Inglaterra, mas na mesma França. Procurava-se, com elas, entre outros objetivos, anular uma consequência mais estritamente literária: a procura de “effeitos que subjuguem as multidões, que espreitam as inclinações do povo para as lisonjearem, os seus gostos depravados para os satisfazerem”. Portanto escritores sem personalidade nem criatividade próprias, meros intérpretes das fraquezas “do povo”. Mas estou a lembrar-me de V. Hugo, por exemplo, bem como da crítica feita a ele pela Edimburg review e que transcrevo em outro passo desta obra.

 

O historiador e poeta português era um censor clássico e paternalista que fazia falta, para contrabalançar o que ele próprio critica. Um censor cuja oratória povoou grande parte da mentalidade romântica lusógrafa. Veja-se, por exemplo, como perdurou esta associação entre o comércio literário, o mau em literatura e o mal eticamente considerado. No entanto, o cenário que nos esboça, em traços muito breves e visualmente sugestivos (a “ideia” pendurada “no mercado entre o barril de manteiga e a saca de algodão”), foi, como disse, o quadro mais representativo da compra de livros nas colónias portuguesas e no Brasil. Em muitos casos, como o de Francisco Gomes de Amorim, a literatura não teria entusiasmado ninguém se não fosse distribuída assim. O paternalismo, tanto quanto uma alta exigência artística e ética, por mais preocupado que se esteja com a alfabetização, acaba por afastar da literatura as grandes massas de leitores e mesmo alguns criadores não teriam chegado a sê-lo se não houvesse na mercearia, na loja onde se vendia tudo, ‘calhamaços’ velhos distribuídos quase ao preço do kg de papel. O facto é que, se esse lugar não for ocupado pelos “romancistas modernos”, será ocupado por outros, por exemplo por livros de superstição (também referida por Herculano) e por literatura de mais baixo calibre ainda. Uma necessidade básica das populações, a de se distrair literariamente, sustentará qualquer aparição que a preencha sem muita exigência. Ironicamente, como disse no início deste item, uma das obras de Herculano, Lendas e Narrativas, era vendida assim, previsivelmente em Luanda, incluindo numa das folhas uma conta de mercearia…

 

Alexandre Herculano foi dos principais protagonistas da primeira geração romântica portuguesa. Foi, também, referência quase sagrada, moral e intelectual, da geração que se lhe seguiu, a geração de O trovador. Desse grupo em que se integrou Gonçalves Dias em Portugal, e no qual Maia Ferreira tinha vários amigos – um grupo muito dado a dedicatórias e poemas de motivação particular – saiu a figura tutelar de João de Lemos (1819-1890), um talassa, crítico do liberalismo onde, porém, tinha muitos confrades e amigos. O próprio A. P. Lopes de Mendonça, ligado à ala esquerda do liberalismo, disse de João de Lemos, num livro que circulou entre nós (Mendonça, 1855):

 

Entre os poetas líricos ocupa o sr. João de Lemos um dos primeiros lugares.

 

Em Coimbra, quando estudava Direito, foi João de Lemos dos principais impulsionadores do jornal O trovador (1844-1848), no qual se revelou toda a primeira geração ultrarromântica, ou toda a segunda geração romântica. O periódico abre mesmo com uma «Invocação» dele ao “Arcanjo da poesia” (Lemos, 1853), que resume bem, no final, o programa do grupo:

 

Arcanjo da poesia, vem poisar-te

Na lira ao Trovador – que ousado enjeita

Essas loucas ficções da velha Grécia,

Quebra numes d’Ascreu, Musas despreza,

Renega antigas leis, descrê do Olimpo,

E por Musas te quer, por crença o Eterno,

O mundo por altar, os céus por templo! 

 

Era o firmar do programa poético romântico e hugiano. Maia Ferreira, que estudou em Lisboa pouco antes de se publicar O trovador, apanhou este mesmo programa - à sua maneira, claro.

 

Enquanto poeta, João de Lemos cultivou um lirismo simples, piegas como foi típico dessa escola, também tradicional, muito português. Além de piegas – o que não lhe limitou popularidade na altura – o seu romantismo sofria de outros defeitos de escola, metáforas mortas ou quase a morrer, lugares demasiado comuns, fatos surrados enfim, de antigos regimes. O facto é que, também na altura, em Portugal, o Romantismo era ainda recente e, portanto, estas caraterísticas não soariam tão desusadas ainda, só tinham era condições para logo a seguir se depreciarem e os ímpetos dos trovadores, encontrando nelas vocabulário para os seus anseios imediatos, não se aperceberam disso. Lopes de Mendonça fala nos “primores da elegância, e do luxo” de que se revestiria o português arcanjo de João de Lemos (Mendonça, 1855 p. 214). Ao ler-lhe os poemas percebo que há por trás um homem de corte, com trato social treinado, habilidoso, mas a sua linguagem poética não deixa de estabelecer uma ponte muito directa com a do povo, com a do português castiço, facto que terá contribuído para torna-lo famoso e que também se articula com Victor Hugo.

 

«A lua de Londres» (cidade onde se exilou com a derrota do absolutista D. Miguel) viria a ser o mais emblemático poema seu, mais popular igualmente, cantado por cegos e pedintes nas ruas e declamado por jovens debutantes nos salões. Lopes de Mendonça realçava o entusiasmo poético de João de Lemos quando falava dos grandes feitos e heróis do passado, mas fê-lo para dizer que foi o sentimento poético de João de Lemos que determinou a sua opção política legitimista (miguelista). Essa perspetiva resulta de um dos vislumbres surpreendentes do grande crítico, perante os quais nem sempre sei se posso ou devo concordar ou discordar. Atrai-me faz muitos anos, a conceção de que o sentimento poético antecipa as opções políticas e acho a hipótese muito mais bela do que a oposta, que também foi verdadeira em certos autores. O que há, seguramente, é um vincado portuguesismo na lírica de João de Lemos e isso combina-se com uma visão política passadista, na medida em que muitas vezes se conota um regime anterior com os sucessos de um povo num tempo anterior e o regime passa a ostentar essa medalha que, sendo outro o regime, talvez ostentasse também, desde que na mesma época. 

 

O portuguesismo não impediu a popularidade fora do reino, por exemplo em Angola (certamente sustentada pelo segmento colonial, mas não só). O fenómeno deu-se, em parte, pela musicalidade dos versos (o próprio poeta chegou a compor canções), um ponto essencial numa sociedade onde a música era transversal e valorizada por todos. A pesquisa formal, de que dei conta no primeiro volume de Kicôla, prova também isso (Soares, 2012). O amor às coisas da terra, que ele pregava e praticava, podia-se transpor e legitimar o mesmo amor para as coisas de Angola e sua história, que tão fundas consequências teve em Cordeiro da Mata e, mesmo antes, em José de Fontes Pereira.

 

No entanto, nos arquivos consultados até hoje ainda não encontrei exemplares de obras suas a circular por Angola. Mas encontro referências em poemas, desde José da Silva Maia Ferreira, que mantém com João de Lemos curiosas coincidências. Por exemplo no poema «Uma noite de Natal», de Maia Ferreira, que não sei quando foi publicado pela primeira vez mas saiu na Lisia poética em 1848, no Rio de Janeiro, em cujo segundo volume o segundo poema é de João de Lemos (Lemos, 1848 p. 20) e em que publica também A. P. da Costa Jubim, amigo brasileiro de Maia Ferreira e admirador de João de Lemos. A epígrafe (Natus est Jesus) serve de título a um poema de natal do autor d'«A lua de Londres», que é publicado no mesmo tomo da Lisia poética e saiu depois no vol. II do Cancioneiro (Lemos, 1859 pp. 124-133). Num caso quanto no outro se misturam versos longos e curtos (alguns com métrica igual à do poema de Maia Ferreira). O poema de Maia Ferreira, sendo mais curto, aproxima-se da primeira secção dessa composição mais longa de João de Lemos, iniciando igualmente por uma estrofe com decassílabos, isolada. No caso de João de Lemos, a estrofe tem nove versos, todos heroicos; no caso de Maia Ferreira tem onze, alternando heroicos e sáficos constantemente. Por aqui se marcou, também, essa diferença que mostra a habilidade e liberdade rítmica de Maia Ferreira, fugindo à monotonia métrica e à cesura interna fixa, que o verso romântico português ainda respeitava. A variação, nesse poema de João de Lemos, era assegurada por um recurso comum no romantismo lusógrafo: alternar a, ou as, estrofe longa fazendo-a seguir por outras de verso curto, em geral um quebrado mas não necessariamente. É o caso em «Natus est Jesus», seguindo-se aos decassílabos heroicos uma sucessão de pentassílabos em oitavas; em «Uma Noite de Natal», de Maia Ferreira, seguem-se aos decassílabos vários quartetos heptassilábicos em duas secções. Nos restantes aspetos formais as composições diferem: distribuição rimática, sequência métrica posterior e a própria extensão.

 

Na primeira estrofe do poema de Maia Ferreira (Ferreira, 2002 p. 40) a frase “mais um hino cristão”, de João de Lemos, assemelha-se à frase “Mais um canto piedoso” e à evocação de “Hinos de glória” e das “mágoas de Cristão”. Aliás, o início deste poema de Maia Ferreira parece responder positivamente ao programa estabelecido pelo poema de João de Lemos na abertura de O trovador e, simultaneamente, a «Natus est Jesus». Ambos os poemas repetem, nessa estrofe inicial, “em novos carmes”. Maia Ferreira fala em “suave-grato incenso” (curiosa e não isolada essa grafagem por hífen, que também irá ser comum em Cordeiro da Mata), enquanto João de Lemos escreve “com místico perfume”. João de Lemos fala em “of’renda” ao “Deus Menino”, Maia Ferreira fala em “oferecer” ao “nato Redentor”. Maia Ferreira escreve “pulsando a lira”, João de Lemos invoca: “oh! Minha lira”. O português escreve “versos do bardo estremecido”, o angolense “sublimes versos”.

 

Como vemos, não se trata de mera imitação, em tudo o resto as duas estrofes divergem:

Mais um hino cristão, oh minha lira,

Uma saudade mais, que desabroche,

Com místico perfume, à raíz d’alma!

Quero ir-me ao Presépio à meia-noite,

Por of’renda levar ao Deus Menino

Os sons do coração em novos carmes.

Versos, versos do bardo estremecidos,

Afinai-vos melhor no tom da crença:

Estrela dos três reis, sê minha musa!

(Lemos, 1859 p. 124)

 

                                

 

Ó Templo Sacrossanto! Inspirai-me

Em novos carmes, suave-grato incenso,

Para do mundo ao nado Redentor,

Hinos de glória, em sublimes versos,

Pulsando a lira, ufano oferecer!

Mais um canto piedoso agora entoe

Quem mágos de Cristão no peito sente,

E que ante ti, ó Deus tão poderoso,

Curvado, humilde implora de seus erros

A vénia tua, ó Lume alvinitente

De princípio uno e trino egrégia prole!

(Ferreira, 2002 p. 40)

 

Em tendo havido, como parece, prévia leitura do poema de João de Lemos por Maia Ferreira, a sua intertextualização reestrutura o poema inicial e personaliza-o fortemente. Mas é possível, também, que Maia Ferreira e João de Lemos tirassem as respetivas composições de um ambiente bibliográfico e social parecido, pelo menos no que diz respeito à noite de Natal...

 

Outra epígrafe que o nosso poeta vai buscar a João de Lemos é de um poema também saído na Lisia poética e depois em Poesias, publicado no Rio de Janeiro em 1847 (Lemos, 1847 p. 37). Os dois versos vieram do meio de um poema encimado por uma epígrafe de Delavigne e que se intitula «À beira do Mondego» (Lemos, 1847 pp. 34-38). Os poemas são bem diferentes, apessoados para usar um termo hoje em desuso, mas que tem muita propriedade no caso. Mais uma vez, Maia Ferreira reestrutura completamente, em função do motivo pessoal, o seu intertexto, do qual ficam poucas marcas. Uma delas é a oscilação (canónica, mas seguindo mais ou menos a mesma ordem) entre versos longos e curtos. Outra está, precisamente, nas estrofes curtas. João de Lemos desfia em sete estrofes de quatro versos com ritmo 4’3, uma longa anáfora feita sobre “amei” (“amei-lhe”, “amei seus” (Lemos, 1847 pp. 36-37)). Maia Ferreira faz a anáfora apenas uma vez, escreve três estrofes de quatro versos heptassilábicos mas com ritmo interno variável, mais uma vez (por exemplo, na estrofe inicial, onde está a anáfora, os dois primeiros versos fazem 5’2 e os dois últimos 3’4). Na primeira dessas estrofes atinge e supera a veemência da expressão de João de Lemos:

Amei com amor do Céu,

Amei com amor do inferno,

E se houvera amor eterno,

Esse amor seria meu!

(Ferreira, 2002 p. 51)

Mas ambas as composições diferem muito, quer na dispositio, quer nos elementos que ela organiza, havendo apenas algumas pinceladas de paisagem com traço vagamente semelhante.

 

O que, nessas estrofes, mais me parece de destacar é uma expressão nossa conhecida já e tão mal interpretada. Refiro-me a este verso de João de Lemos (Lemos, 1847 p. 37):


Amei-lhe a planta tão breve 

 

que Maia Ferreira reorganiza no famoso poema «A minha terra» (Ferreira, 2002 p. 27):

 

tem donzelas de planta mui breve

 

O poema é importante para nós ainda por outro motivo: é que, nele, refere João de Lemos uma sua paixão com a máxima simplicidade: “a minha Júlia”. O que nos leva a estranhar menos a mesma simplicidade com que Maia Ferreira canta “a minha Maria” num dos seus poemas. Isso estava incluído, na verdade, no programa de O trovador, embora não fosse geralmente praticado.

 

Provavelmente o nosso poeta leu, não só na Lisia poética, mas nessa edição brasileira (Poesias) de 1847 a lírica de João de Lemos e a digeriu demoradamente a par da de Gonçalves Dias.



 

Camilo Castelo Branco (1821-1890) era um autor lido e apreciado, seguramente, em Angola. Maia Ferreira, que foi amigo de amigos dele, possuía livros seus em Lisboa, entre 1856 e 1859. Pedro Félix Machado o leu seguramente, apanhando aspetos quer da sua ironia (mais ainda que da de Eça, de quem estava mais próximo pelo realismo narrativo e pela ideologia, mas Camilo teve uma fase final realista, que se nota em muitas das Novelas do Minho), quer do olhar cético sobre os amores românticos (que Camilo explorava nas leitoras e ao mesmo tempo satirizava com subtileza cruel), quer pela facilidade em compor as peripécias folhetinescas. Por outro lado (o do romancista mesmo), Camilo Castelo Branco, mestre em disfemismos, além de ver um amigo dileto condenado a degredo fatal em Angola depois de matar a mulher, aborda várias vezes o território, ou suas personagens para lá vão. Em Aquela casa triste, por exemplo, o pai da desditosa Deolinda havia sido negreiro em Benguela. O seu companheiro de prisão, ao qual dedicou excelente prosa, José do Telhado, condenado ao degredo em Angola, viria a morrer no forte Mucari, próximo de Malanje. E várias outras referências ao nosso território podemos encontrar na sua obra, o que atrairia mais clientes - que, pela sua verve de humor rasante e certeiro, tinha desde logo entre nós.

Muito estudado e reinterpretado, não preciso aqui fazer-lhe a bibliografia comentada, nem a biografia romanceada. Assinalo que a Biblioteca do Governo Provincial de Luanda regista vários livros seus, em coleções, e o Arquivo Histórico Nacional regista os seguintes títulos e datas de edição: Noites de insónia oferecidas a quem não pode dormir (Branco, 1874); Novelas do Minho: gracejos que matam (Branco, 1875), Novelas do Minho: a morgada de Romariz (Branco, 1876), Novelas do Minho: a viúva do enforcado (Branco, 1877), Maria Moisés (Branco, 1877), Boemia do espírito (Branco, 1886). Exceto a última, todas as outras foram publicadas na década em cujo final a geração do Jornal de Loanda se revelou e a última teve, também, tempo de ser lida pelos nossos poetas. Investigando os exemplares a que acedi, nada pude concluir sobre a história respetiva, pelo que não posso assegurar o ano em que teriam chegado a Luanda, nem estes nem os que li na antiga Biblioteca Municipal. Mas a sua provável circulação na colónia coincide com a referência que lhe faz Cordeiro da Mata no Almanach (era de resto referência na imprensa da época).

 

De todas estas obras retenho alguns títulos. O primeiro, não vem mencionado acima: Espinhos e flores, o que evoca imediatamente as Flores e espinhos do nosso Óscar Bento Ribas. No entanto, além do título não me ocorre outra semelhança, tanto mais que o livro de Camilo é uma peça de teatro, baseada na estória de uma mãe solteira.

 

O segundo, as Novelas do Minho, muito lidas na época. Seguindo Sampaio Bruno, trata-se de uma “coleção maravilhosa” na qual “situações morais, humanas e vivas, se desenrolam com elegância sóbria a que só ascendem os escritores feitos” – destacando-se, no seu entender, O cego de LandimMaria MoisésO comendador[8]. Fidelino de Figueiredo coincide com Sampaio Bruno no que diz respeito à maturidade e, parcialmente, nos exemplos. Acrescenta alguns títulos aos exemplos e um deles nos interessa: Gracejos que matam, a primeira narrativa em que terá individuado “a personagem, os seus gostos, as suas opiniões, a sua constituição moral” (Figueiredo, 1923 p. 234). Fidelino coloca as Novelas do Minho na transição para a terceira fase, realista, da obra do autor.

 

Um poema de Cordeiro da Mata chama-nos a atenção para outro romance de Camilo, não considerado ainda (há quem diga novela, mas é romance para o próprio autor) e de que saiu uma segunda edição, em 1863, e uma terceira em 1878. O poema intitula-se «A taça do prazer» e foi escrito na Barra do Quanza em 1883 (Matta, 2001 p. 151). Num parágrafo de Lágrimas abençoadas (Branco, 1857), o romancista português escreve:

Felicidade, o que és tu? Engano providencial que nos alimentas na alternativa do desejo e do desengano. Amiga cruel que nos foges com a esperança, apenas os lábios sentem o travo do absinto que a taça do prazer esconde no fundo.

Assumidamente e desde o começo o romance é dedicado à possibilidade de se ser feliz graças a Deus. Assim mesmo. Porém este parágrafo resume outra postura, justamente a versificada pelo nosso poeta. Ele escreve:


A taça do prazer

Quem a sorve a longo hausto

Sem poder-se conter,

Sente-se fraco, exausto!...

 

Embora seja doce,

Quando é toda esgotada,

Como se amarga fosse,

Parece ser ervada!...

 

Oh! Fonte de ventura,

Se és doce como mel,

Porque após a doçura

No fundo t’acham fel?!...

 

Feliz do que sorver-te

Com mil cautelas sabe!

Perto não vê a morte,

De alegre jamais cabe!...

 

Ai do que até ao fundo

Sem tino te libou;

Para ele no mundo

O que há de bom findou…

 

Camilo confessa (no prefácio, de 1853) que também “libei na poesia do século a mentira”. Ter-se-á salvo pela religião, segundo julgou nesse momento (ou disse julgar). O que, porém, nos interessa é que usou o verbo “libar”. Podem contrapor-nos que essa imagem (‘libar na taça do prazer’) é recorrente, pelo menos desde o fim do século XVIII, tanto quanto outras do poema (por ex. “sorve a longo hausto”). Sem dúvida que sim. Mas o que diz o poema de Cordeiro da Mata resume o que diz o romance de Camilo, residindo a diferença em que o nosso poeta acentua aquela vertente trágica e o romancista português desenvolve mais o que vem sintetizado na penúltima quadra. Ou seja: o poeta do Quanza desenvolve liricamente o que o novelista resume naquele parágrafo citado atrás.

 

A idealização da Felicidade como perfeita realidade, à qual Joaquim Dias dedica um curto mas muito bem estruturado poema, parece também resumir o projeto e o propósito de Camilo Castelo Branco naquela obra.

 

Outra passagem de outro poema («A um analfabeto / (que se tinha em conta de sábio)») aproxima os dois escritores. Ali Cordeiro da Mata escreveu dois versos iniciais assim:

 

Vós, ó civilizadas gentes, que os sucessos

Estupendos e raros, sempre ouvis expressos

 

A expressão que se transporta de um para outro verso (“sucessos estupendos”) é usada tal-qual apenas duas vezes entre livros e periódicos disponíveis em linha. A primeira vez é num livro de Camilo Castelo Branco, O bem e o mal (Branco, 1971 p. 260), recolha de estórias de proveito e exemplo, que têm a característica de concluir sempre com finais felizes. Ela foi publicada em 1863 (Branco, 1863) e depois foi sendo reeditada (as primeiras vezes com revisão e emendas do punho do autor), saindo várias reedições bem a tempo de Cordeiro da Mata a ler. Apesar de não ver o título em nenhum dos arquivos pesquisados em Angola, Camilo foi muito lido na segunda metade do século XIX entre nós e isso torna bastante provável a intertextualização do nosso poeta – que, de resto, a fez num poema bem disposto em que também intertextualiza com Bocage, como vimos atrás.

 

A segunda vez que li a frase em rede foi num livro conhecido de Júlio Diniz, cuja primeira edição saiu quatro anos mais tarde, As pupilas do Senhor Reitor (“Chronica da Aldeia”) e para o qual não encontrei referência nas fontes angolanas.

 

Todas as outras obras em que se encontra exatamente esta frase não se publicaram a tempo de as ler o poeta do rio Quanza.

 

 

De Camilo Castelo Branco tivemos ainda a publicação da correspondência com Vieira de Castro, uma figura com breve mas significativa presença em Angola, para onde veio degredado e onde, para além de Luanda, conheceu também o Cazengo e Benguela.

 

Esta correspondência, cuja origem será esclarecida, em parte, nas próximas linhas, era acompanhada, nas nossas fontes, por um livrinho com dois poemetos de homenagem ao político e orador degredado em Luanda. O livrinho será referido mais à frente, nele se destaca, porém, desde já, o nome do poeta português Guilherme Braga (1845-1876) – o mais político dos realistas, segundo Fidelino de Figueiredo (Figueiredo, 1924 p. 96). Vemos, então, que a figura de Vieira de Castro reuniu à sua volta, sem querer, um poeta realista e um narrador ainda romântico, ou ultrarromântico.

 

A correspondência de Camilo muito se baseou no espólio do próprio Vieira de Castro, já veremos porquê. Dos poemetos se conclui sobre a extraordinária inteligência, coragem e integridade do degredado, na homenagem póstuma do correligionário (Braga). O degredado era um orador brilhante, extremamente culto. Traduziu “o medicinalíssimo Livro da Solidão do Doutor Zimmermann, na frase de Castilho, que o aconselhava a todos vivamente (Castilho, 1905 pp. I, 107; II, 105). Quando estudante, liderou a revolta contra a reprovação de Barjona de Freitas no concurso para catedrático. O preço foi muito elevado: a reprovação foi retirada, mas, em seguida, os decanos da Universidade de Coimbra reuniram-se em segredo e expulsaram-no do corpo docente.

 

Socialista e inflamado, com um ardor combativo difícil de sustar, Vieira de Castro criou facilmente muitos inimigos e não conseguiu manter a coerência ao mesmo tempo que a dignidade financeira. Foi, por isso e por um fraco sentido de estratégia, ficando muito isolado, apesar da vibrante eloquência. O isolamento, por outra parte, resultava dos ziguezagues partidários a que se obrigou para tentar manter uma posição de privilégio. Quando procurava resolver os problemas financeiros trabalhando como advogado, por coincidência no escritório do pai de Alfredo Troni (José Adolfo, já em Lisboa), matou a mulher (ele casara-se no Brasil, segundo os seus detratores com olho na herança da noiva). Matou-a motivado pela traição dela, com clorofórmio cedido por um amigo farmacêutico. Esse crime é que o levou degredado para Angola. Entre nós morreu, já em Luanda (vindo do Cazengo), com um “ataque de perniciosa” – uma forma grave de paludismo, talvez paludismo cerebral. Viveu só durante um ano no país (melhor: na colónia), como havia sucedido ao poeta inconfidente I. J. Alvarenga Peixoto, quase cem anos antes. Após a morte, uma espécie de mordomo-sócio que levara consigo roubou-lhe todo o espólio, incluindo o literário, que terá sido vendido, mais ou menos ilegalmente, ou pelo menos levado ilegalmente a Camilo, em parte, desaparecendo o restante. As autoridades, a instâncias do irmão, fizeram tímidas tentativas de apurar os factos e acabaram comunicando à família que seria impossível imputar o roubo ao criminoso, dado o ambiente geral de corrupção vivido ali – como vemos, hábitos enraizados. Já no fim da curta permanência em Angola, Vieira de Castro apostara na produção de café, cujos resultados começavam a dar bons frutos quando o paludismo o acometeu fatalmente.

 

Ainda na bibliografia sobre Vieira de Castro se fala de outro degredado coimbrão, o lente Urbino de Freitas, que teria envenenado os sobrinhos e, depois de cumprir pena em Angola, foi morrer ao Brasil. Quanto ao orador, acabou ambientando-se numa Luanda que primeiro detestava. Nas primeiras cartas escritas de Angola revoltava-se com a impiedade dos brancos escravocratas, ao mesmo tempo em que mostrava menosprezo pelos “negros”, que achava brutais, apesar de reconhecer que “a resistência do negro escravo às imposições bestiais do branco livre” era o único sinal de dignidade humana por aquelas paragens.

 

As suas amizades locais o tornaram prestigiado, respeitado, e lhe dariam talvez uma recuperação social impossível na capital do Império. Elas passaram pelo considerado professor Miranda Henriques (talvez a pessoa mais influente no ensino em Angola nesse tempo) e respetiva filha, que via também nas almoçaradas das grandes casas da ilha de Luanda. Passaram, ainda, por Urbano de Castro, versejador e jornalista que fez a primeira doação bibliográfica para se constituir a Biblioteca Municipal, hoje Biblioteca do Governo Provincial. Urbano de Castro ficou tão fascinado, com a figura do enérgico e polémico orador, que chegou a promover uma discreta tentativa, junto ao rei D. Luís, no sentido de lhe perdoar o crime cometido.

 

A presença destes degredados trouxe com eles – especialmente no caso de Vieira de Castro – uma imagem viva de Camilo Castelo Branco e de outros escritores, seus amigos e ex-amigos, como Ramalho Ortigão, Eça de Queiroz, Guilherme Braga (que se manteve fiel à sua memória). Lembremos, agora, que Braga publicara um poemeto em homenagem ao amigo, juntamente com outro poema de Vieira de Andrade, de motivação igual, e esse livro constava dos ficheiros do Arquivo Histórico em Luanda: À memória de José Cardoso Vieira de Castro (Braga, et al., 1872). Com as referências vivas a tais autores via-se, também, reforçada a componente socialista e republicana entre os intelectuais europeus e africanos da pequena colónia. De resto, com alguns deles ainda partilhou, o fogoso orador, as páginas de O mercantil. A sua presença em Angola pode, por isso, concorrer como uma das fontes possíveis do vocabulário protossocialista de José Bernardo Ferrão no poema sobre o rio Quanza – sem qualquer dúvida, o melhor que lhe conhecemos (publicado no Almanach de lembranças para 1889).

 

A convivência com os degredados trouxe, portanto, informação cultural e bibliográfica atualizada e constituía – no caso de Vieira de Castro, mais uma vez – um contributo para afinar o estro polémico dos nossos oradores e jornalistas (não tanto dos poetas líricos, pois Vieira de Castro era, nesse aspeto, um conservador). Além disso, Vieira de Castro defendeu, mesmo antes da sua partida para o degredo, a ideia de que o destino das colónias, tal como nos EUA, seria o da emancipação. Racista como era, ele pensava na emancipação dos colonos brancos face ao Portugal europeu. Ora, foi precisamente esse o pensamento que se manteve entre muitos colonos brancos já no século seguinte e, com tal sentido, alguns apoiaram José de Macedo quando este fez a defesa d’A autonomia de Angola. Por essas e outras, associado o prestígio que ia granjeando na colónia – onde outro grande orador, seu correligionário e amigo (Teixeira de Vasconcelos), o precedera – o Governador-geral e sua equipa fechariam os olhos ao esbulho do espólio, tendo possivelmente havido mesmo ordem para que nenhum escrito seu saísse do futuro país (Valente, [2001]).



 

Entre os críticos portugueses destas gerações e cujas obras tenham passado por Angola, destaca-se outro autor infeliz, este não tanto por culpa sua: A. P. Lopes de Mendonça (Lisboa, 14.11.1826 – Lisboa, 8.10.1865), também ele ‘de esquerda’ e que, não sendo bom orador (por timidez), era excelente na prosa, com mais precisão na crítica literária - embora praticasse igualmente a crónica, o artigo de opinião (política), o conto-folhetim, mesmo outros géneros. Um ano mais velho que Maia Ferreira e falecido quase no mesmo ano do nosso poeta, foi socialista utópico e democrata convicto (Pato, 1877 p. 127), além de prolífico jornalista (colaborou, pelo menos, em A Revolução de Setembro, SemanaRevista peninsularEcho dos operáriosArchivo pitorescoPanoramaPátria e Illustração Luso-Brazileira). No princípio da vida adulta esteve em Angola, como aspirante da Marinha, numa viagem “cujas agruras recordará anos mais tarde” (Simões, 2003 p. 323). Talvez isso tivesse facilitado a divulgação do seu nome entre nós.

 

Certo é que nos deparamos com duas obras suas nas fontes angolanas – e duas obras importantes. A primeira, Memórias dum doido, constava do ficheiro do Arquivo Histórico Nacional (Mendonça, 1849), mas não pude ver o exemplar, por não me darem permissão para tanto[9]. No ficheiro se menciona “3.ª ed.”, mas com a data da primeira e a editora da terceira, que saiu já no século XX. A primeira edição veio a lume em 1849, no mesmo ano, ou quase, em que saíram as Espontaneidades e dois anos depois da derrota da Junta do Porto, em cujas hostes Lopes de Mendonça se juntou com outros progressistas da época. Mesmo que o exemplar referenciado nos ficheiros não seja da primeira edição, natural seria que ela circulasse na colónia, pois o seu autor a visitara poucos anos antes e se tornara, entretanto, conhecido em Portugal. Há, de resto, qualquer sombra do Maurício das Memórias dum doido no “Maurício do high-life” do soneto «Frei Tomás», de Pedro Félix Machado. Infelizmente, apenas ‘qualquer sombra’. E é também verdade que o poema de Maurício para os olhos da Viscondessa devassa faz lembrar várias passagens de idêntica motivação (tirando a viscondessa e a devassidão) que lemos em José da Silva Maia Ferreira. Por exemplo, «Os teus olhos» nas Espontaneidades (Ferreira, 1849 p. 73) e vários outros poemas que falam da paixão pelo olhar e pelo brilho e fascínio do olhar. É verdade, porém, que prosseguimos num caminho de sombras enganadoras e essa motivação tornou-se tópica no ‘segundo romantismo’, como também é verdade que sobre elas e sobre o segundo romantismo se agitavam ainda raios de luz garrettiana…

 

Lopes de Mendonça partilhou os ideais setembristas com muitos intelectuais e poetas portugueses da época, vindo a prefaciar Os meus últimos versos, de João d’Aboim, seu correligionário. O socialismo utópico podia torná-lo exterior aos círculos ultrarromânticos, mas precisamente João d’Aboim, amigo e padrinho literário de Maia Ferreira quando do seu exílio carioca (posterior à derrota dos setembristas), João d’Aboim foi, na poesia, um ultrarromântico, na política um setembrista – e não foi o único amigo de Maia Ferreira a juntar os dois atributos.

 

A vocação romântica de Lopes de Mendonça foi também captada muito cedo por Bulhão Pato. Para o poeta nascido no país basco, Memórias de um doido “fundiu-se de um jacto. Livro romântico, exagerado, sentimental, carregado; sem enredo notável, nem traços profundos de caracteres, mas de fogo, mas eloquentíssimo.” (Pato, 1877 p. 126) E, no entanto, com um capítulo final metaliterário, profundamente irónico, moderno mesmo…

 

Júlio César Machado – que nos dá um retrato muito humano e muito vivo do grande crítico português (o qual o apresentou à sociedade literária de então (Pato, 1877 p. 105)) – confessa que a sua própria ideia de literatura lhe veio de Mendonça, mais: “a poesia das Marílias e das Márcias” ele substituía-a pelo “sentimento moderno, o gosto, a ironia” (David, 2007 p. 37). Porém Lopes de Mendonça era um romântico, radicalizando pelo socialismo a herança inicial de Garrett e de Herculano, é certo, mas inspirado em Lamartine, Lamennais e Chateaubriand (o “legitimista” que cita em sua defesa da irreversibilidade do processo de emancipação dos ‘pobres’ (Mendonça, 1849 pp. VIII-IX)). A maioria das suas críticas é, assumidamente, impressionista (mas nem por isso menos certeira, menos profunda ou menos contextualizada do que precisava ser). Entretanto, herdaria de Villemain, que seguramente leu com muito gosto, uma retórica viva, entusiasmada. E estava ao corrente da crítica literária do seu tempo. Ou seja: não representava, para nós, um atraso, nem era um fator de atraso, citando “Quinet, Michelet, e até o Curso de Estética de Hegel” (Simões, 2003 p. 330).

 

A segunda das obras que terão circulado em Luanda não ficou menos famosa na época e foi propriedade de Joaquim Eugénio de Sales Ferreira. As Memórias de literatura contemporânea foram publicadas pelo mesmo editor de A ilustração luso-brazileira, onde figuram grandes e menores nomes do romantismo literário português, incluindo o de Lopes de Mendonça. Bulhão Pato, amigo e admirador de Mendonça, relata-nos “o entusiasmo de Garrett pelos folhetins” do mentor de Júlio César Machado (David, 2007 p. 43), folhetins onde ele exercia, geralmente, a crítica literária. As súbitas inspirações que o assaltam no livro são também típicas do génio romântico. Mesmo o seu socialismo, idealista alinhado com a revolução de 1848 (que marcaria “uma nova era na civilização europeia” – frase com que abre o texto «A França em 1848» (Mendonça, 1849 p. 261) e que viria a reconhecer como profecia falhada), seria uma das facetas do seu romantismo – também não direi que do seu ultrarromantismo (David, 2007 p. 44), tanto quanto a desilusão com o processo histórico, levando-o a reconhecer que a emancipação dos operários demoraria mais do que pensava inicialmente (Mendonça, 1849 p. VII).

 

Não foi, de resto, a sua a primeira associação entre socialismo e Lamartine nestes mercados: O progresso de Pernambuco, em 1847 (ano em que Maia Ferreira vai por negócios ao Rio de Janeiro), ao mesmo tempo em que faz doutrina e informa sobre o socialismo, traduz duas meditações do “cisne” francês: XIII, «O lago», e XVII (Lamartine, 1847 p. 184). Jesus Cristo, Proudhon, Chateaubriand, Lamennais e Lamartine, quando não Eugène Sue, eram santos e anjos da mesma constelação para este socialismo, que desejava o combate dos operários contra o capitalismo e ao mesmo tempo acreditava nos heróis sublimes, quase sobrenaturais, que trariam de vez o paraíso à terra, fosse por via do Papado, fosse por outra igualmente mítica. Talvez tenha sido essa a afinidade que Antero detetou no autor das Memórias dum doido – mais funda do que a que explicita, vendo nele um revolucionário sincero mas diletante, “um inofensivo precursor” (Antero recordaria Quinet para lembrar que ele chamava o  movimento de 1848 uma revolução romântica (Simões, 2003 pp. 326, 328-329)). O que mais distinguia Lopes de Mendonça desta constelação literária e política (maioritariamente romântica, moderada e liberal) era, sem dúvida, o seu republicanismo radical. Não duvido que ele tivesse chegado a Angola e a Cordeiro da Mata. Aliás, é de repetir, quando homem novo ainda, ele esteve de facto em Angola, até onde veio enquanto aspirante da Marinha (Pato, 1877).

 

Uma aproximação, pelo menos, se torna sugestiva. Ao ler as Memórias da literatura contemporânea (1855), de que há um exemplar na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, deparei, na crítica às Filles de marbre (lidas no Brasil por Castro Alves e Álvares de Azevedo), com uma frase que me lembrou um verso de Cordeiro da Mata. A frase era “as mais pecaminosas filhas de Eva” e o verso dizia “serias, das filhas d’Eva”. Comparei os dois contextos e não vi maior relação, tanto que “filhas de Eva” deve ter sido expressão comum. Mesmo assim, li a edição electrónica da peça para procurar melhor a frase, mas não encontrei. Voltei atrás a ler o resumo do livro no artigo de Lopes de Mendonça (Mendonça, 1855 p. 31). O resumo foi centrado sobre a personagem de Marco, a protagonista feminina da peça. Por aí, sim, batia certo: a caracterização de Marco era muito semelhante à da mulher naqueles poemas de Cordeiro da Mata em que a musa passa a ser vista enquanto Messalina. É justamente no poema «Messalina» que essa caracterização mais coincide com o resumo de Lopes de Mendonça. Cronótopos, pensei. Reli a peça (Filles de marbre) e, embora se mantenha a coincidência no tipo de mulher, não há proximidade na linguagem nem nada, no poema do angolense, que recorde esse drama especificamente. Continuei, desconfiado, a ler a boa prosa, quase encantatória, de Lopes de Mendonça. Poucas páginas à frente, ele refere uma canção que as personagens entoam num momento de alegria em Les filles de marbre e que é bem a caracterização do tipo de personagem da «Messalina» de Cordeiro da Mata. Na referência de Lopes de Mendonça, porém, usa-se uma expressão que me avivou desconfianças. É quando ele se interroga sobre como a bela Marco se tornou heroína de um canto “em que todas as comoções poéticas são abafadas pelo tinir de uma bolsa”. Logo a seguir associa-a à “mulher antiga” (Mendonça, 1855 p. 36). Ora, no poema de Cordeiro da Mata, o tipo feminino está associado a Messalina, antiga mulher que não precisava de dinheiro, simplesmente era viciada em sexo, luxúria e transgressão. Mas Cordeiro da Mata retrata o tipo referindo que ele não vibra com “nenhum afeto”, só revelando afeição “ao doce tinir da libra”. Ele faz, portanto, a mesma conotação de Marco e da “mulher antiga”, associando o par com o “tinir” – da libra ou da bolsa, dá no mesmo. Tudo nos indica uma prévia leitura da crítica de Lopes de Mendonça pelo nosso poeta. Não posso comprová-la, mas as aproximações são, de facto, sugestivas. A maior diferença está em que, entre nós, há um tom de lamento, acusação pessoal e desilusão, ao passo que, no crítico português, esse tom é integrado numa leitura ideológica mais definida e mais próxima do seu socialismo romântico e proudhoniano.

 

Desconheço até que ponto os ideais nobres, sentimentais e socialistas ligavam Lopes de Mendonça a Júlio César Machado. Sérgio Nazar David acha que essa ligação passa mais por “certa literatura que une graça e melancolia” (David, 2007 p. 41). No entanto, o humorismo e o sentido crítico da ficção de Júlio César Machado (partilhado com os seus distantes primos angolanos) combinam bem com o sentido crítico e a ironia da literatura de Lopes de Mendonça. E, também, com o sentido crítico e a ironia que foi surgindo no meio ultrarromântico do Porto e com a geração de A grinalda, Faustino Xavier de Novais, mais alguns outros no verso e Camilo Castelo Branco (também colaborador de A Grinalda) na prosa.

 

Camilo Castelo Branco ajudou Júlio César Machado a publicar os seus folhetins em vários órgãos de imprensa e Camilo era bem um escritor ultrarromântico (mesmo a sua ironia sobre o ultrarromantismo era típica dos escritores mais novos dessa filiação, como se pode ver em Faustino Xavier de Novais – o que já referi).



 

Uma obra sintomática, mas habitualmente não pensada nestes percursos, é a de Francisco Gomes de Amorim (1827-1891), filho pobre de um marinheiro. Foi referido atrás, a propósito de Garrett e do neogarrettismo e podia ter sido comentado a propósito de Castilho. Para além daquelas memórias biográficas, um exemplar da segunda edição dos seus Cantos matutinos (Amorim, 1866), que também Gonçalves Dias terá recebido (Biblioteca Nacional, 1972 pp. 197, 199-200), constava da Biblioteca do Governo Provincial de Luanda, com assinatura que me parece do fim do século XIX, a mesma de um proprietário dos livros do Cours d'Economie Politique de Michel Chevalier, professor no Collège de France.

 

Gomes de Amorim serviu de ícone para aspetos míticos da imagem típica do romântico e do lusófono. Um dos aspetos é biográfico e o outro, profundamente relacionado com este, é estilístico. A biografia corporiza mitos da época. Pelo prefácio à primeira edição sabe-se que o autor era minhoto, de “Avelomar”, e foi engajado para o Brasil ainda novo. No Brasil passou muitas aventuras e peripécias e chegou a trabalhar com um remador que tinha sido rei em África. Sentia-se igualado a ele por serem ambos escravos. A sua história mostra como os engajados emigrantes eram enganados e reduzidos à escravidão (eram vendidos no Brasil). Só a sua denúncia da situação valia muito, mas ele fá-la com um tom vibrante e singelo, com um discurso ritmado mais próximo da oralidade que o do romantismo literário, classicizante, de Garrett, mais ainda de Herculano e Castilho, ainda que muitas vezes perdendo qualidade estética. O prefácio torna-se uma peça importante no livro por isso também, pelo estilo vivo e vigoroso com que se conta a história de um homem humilhado pela pobreza e pelo destino, lutador, simples, sem preconceitos e puro poeta, ou poeta ingénuo.

 

Sintomático, Lopes de Mendonça, ao comentá-lo entre os perfis literários em 1855, realça precisamente essa biografia, completando os nossos dados com os da vinda para Lisboa, onde foi sombreireiro e começou a ser reconhecido e apoiado, não só por Garrett, mas por toda a esquerda daquele tempo, que via nele o “poeta-operário”, bem como o carácter irresistível da vocação poética – no caso, “de um grande alcance” (Mendonça, 1855 p. 312). É claro que havia o outro lado, não referido nessa biografia: Gomes de Amorim tinha negócios e endereço comercial em Lisboa (na rua dos Fanqueiros, se não me falha a memória), um seu tio era comerciante no Rio de Janeiro e nenhum deles, ao que parece, padecia de falta de dinheiro. Pelas cartas escritas a Gonçalves Dias percebemos que frequentava Herculano, Rebelo da Silva, Bulhão Pato, Luís Augusto Palmeirim e outros românticos e ultrarromânticos além de Garrett. Podia ser um intruso no meio, mas foi bem recebido e serviu de ponte entre vários poetas lusófonos, ou por querer, ou simplesmente porque estava ali e tinha esse trânsito com o Brasil. Isto visto, regressamos ao mito:

 

Que leitores podiam partilhar com ele essas virtudes estilísticas e as notícias biográficas? Que livros deveriam ter lido antes? Em parte, o prefácio responde a isso.

 

Na narrativa, poética também, da sua formação, percebe-se que os modelos estruturais lhe vinham da História de Carlos Magno e dos Doze Pares de França e de Os Lusíadas. É significativo o lugar onde os incorporou: as “florestas virgens” do rio “Xingú”, onde encontra o seu “reino, o país da fantasia”, que de outra maneira lhe acorda o estro e que dá conteúdo específico aos modelos globalizados que tornavam as florestas “virgens”.

 

O prefácio aproxima, com muito realismo, os mitos da época, o exotismo e a vida pessoal passada no ambiente exótico. O autorretrato do autor é o de uma personalidade insurreta, agressiva, indomável e violenta que preferiu viver entre “os gentios de todas as raças”, partilhando seus “costumes e festins bárbaros. Pareceu-me que a vida errante da tribo fora de propósito criada para a minha organização: dentro em pouco a cor da minha pele era igual à dos tapuyos; deixei a espingarda pela frecha [flecha]; a língua portuguesa pelo dialeto gutural dos jurunas, ou pela língua dos tupis; preferi, enfim, o selvagem ao homem civilizado, e comecei a correr pelos bosques, como o tinha feito nas campinas do Minho”.

 

Note-se como ali estão dois espaços exóticos, marcando o caráter contrastivo do seu raciocínio de composição: o Minho e o dos “selvagens”. O espaço da infância, mitificado em pleno durante o Romantismo, já se tornou exótico também. Ali estão, aliás, vários mitos românticos que vão surgindo e ressurgindo na literatura angolana com Maia Ferreira e sob as mais diversas máscaras a partir dele. O do bom selvagem, ou pelo menos o da vida selvagem como natural, oposta à outra violência, a dos homens civilizados (em Maia Ferreira transfere-se para o binómio mar [selvagem] / terra [civilizada], mas mantém-se em terra quando fala nas virtudes das senhoras africanas, ou no “Soba de tribo selvagem”); a mitificação da infância (por vezes fortemente mediada pela figura da mãe, como sucede com Maia Ferreira); a imagem do homem indomável, herói de si próprio mesmo na desgraça, mas sempre vítima do destino (idêntica à visão que Maia Ferreira parece fazer de si próprio). Esses mitos chegavam-lhes também através de livros, não tinham a autobiografia como fonte única. Por isso ali está (no prefácio) a formação de uma pessoa que atravessa diversas culturas e que se vai modificando (sem perda de identidade) a cada passagem. E é nestes cruzamentos, nestes processos de transculturação, que Maia Ferreira e Gomes de Amorim se identificam mais, a par da língua comum. A genealogia de ambos é diversa, o estilo é mais literário num caso que no outro, mas a biografia literária e não-literária tem estas coincidências estruturais, que se transportam para as obras ou delas emergem, e que os tornam crioulos ao mesmo tempo em se globalizam – um a partir de Portugal, outro a partir de Angola.

 

O primeiro poema dos Cantos matutinos, «O Desterrado», composto “na foz do rio Negro, em 1842”, mostra que permanecia no autor a saudade mitificadora da infância e, por ela, de Portugal. Essa saudade é que afinal o torna um poeta português. Não vou fazer aqui uma comparação sistemática entre a sua poesia e a de José da Silva Maia Ferreira, ou a de Cordeiro da Mata, em que o mito da infância se manteve. Maia Ferreira (por idades, mais próximo) e Gomes de Amorim foram literariamente o resultado deste meio bibliográfico, ainda que um privilegiado e outro levando uma vida, ora de escravo, ora de ladino, ora de aventureiro fora de normas, ora de comerciante razoavelmente sucedido. Divergiam nas respetivas biografias, por vezes opostas na ‘vida real’ (de classes sociais diferentes, com uma formação pessoal e escolar diversa, etc.), mas, graças a um ambiente bibliográfico largamente interseccionado, coincidiam muito no estilo e até em algumas temáticas relacionadas com biografias itinerantes. Não vou fazer uma comparação sistemática porque a influência de Gomes de Amorim sobre Maia Ferreira é impossível e é pouco provável a inversa. Mas Maia Ferreira representa na literatura angolana uma escrita e uma lírica parecidas com esta, mesmo que menos ingénua, mais ‘engalanada’.

 

Para deixar um último exemplo, o migrante minhoto glosa também a «Canção do Exílio» de Gonçalves Dias e, nessa composição, usa uma estrutura e estratégia retóricas semelhantes às de Maia Ferreira. Cito Gomes de Amorim:

 

Nos países d’Europa não se criam

D’estes matos e selvas colossais;

As árvores lá são menos altivas,

Mais humildes e verdes os pinheirais.

 

Medram aqui agigantados cedros,

E vão até às nuvens as palmeiras;

E lá são enfezados os carvalhos,

E não chegam a bosque as oliveiras.

 

Aqui tudo é formoso, imenso, eterno;

Mas não posso julgar-me aqui feliz...

Porque além, onde tudo é mais modesto,

Lá fica a minha pátria, o meu país.

 

A passagem, comum nos poetas imigrantes portugueses no Brasil (Vaz, 2006), parece um resumo lírico da estratégia de Maia Ferreira em «A Minha Terra» – no seu caso relativamente a Angola: desvalorizar o próprio país, menos belo, mais modesto, para depois sublinhar a sua pertença, o seu amor à terra, tanto maior quanto menos interessante ela seja. Em várias outras passagens do mesmo e longo poema ele compara o perigo, a exuberância, o gigantismo, a ferocidade, com o humilde “berço onde nascera”. E, apesar de reconhecer a superioridade da outra paisagem, tomava partido pela sua por ser a sua. 

 

As comparações com Maia Ferreira serão frutíferas ainda em outras passagens. Por exemplo na p. 86, o rugido do leão junta-se ao do tigre e da onça:

 

Meus animais temerosos

Causam aos homens pavor.

 

A poesia de Gomes de Amorim encontra também afinidades posteriores no romantismo angolano. Um dos seus poemas recorda uma estrutura poética típica do último quartel do século XIX em Angola. O poema chama-se «O Caçador e a Tapuya». Retrata uma abordagem feita em nome do poeta-caçador a uma tapuya. Não se trata exatamente da negaça de «Quicôla», visto que ela lhe diz:

 

Para trás não volve a caça;

Meu branco, aprenda a caçar:

Quem deseja caça fina,

Deve-a saber farejar!

 

Mas o esquema geral é parecido e, tal como nos poemas angolanos idênticos, o poeta tem um português apurado mas vivo, raras vezes forçado, ao mesmo tempo que revela conhecer bem os costumes e falares locais.

 

Por estas coincidências de leitura e de escrita, outro dos aspetos importantes do prefácio prende-se com os livros que circulavam naquele tempo e lugar, com a notícia que ele dá disso. O primeiro livro que F. Gomes de Amorim leu foi aos 12 anos e foi, justamente, a famosa História de Carlos Magno, tão popular desde a segunda metade do século XVIII e ainda para Olavo Bilac uma referência funcional. Usou-o no Brasil o poeta minhoto para aprender a ler. Ele fornece indicações mais precisas ainda sobre a circulação da obra fora do espetro da leitura silenciosa, a circulação “anfíbia” da obra: assim que a aprendeu lia-a “a quantos pretos, tapuyos e mulatos apanhava”. A reação era comovida e garantia, portanto, a passagem da obra para fora do estrito círculo escrito. A História de Carlos Magno, tal como nos provara já o folclore de São Tomé, entrava ali também na semiosfera da oralidade e tornava-se transversal nestas sociedades, como demonstram os exemplos referidos de Eça de Queiroz e de Germano Almeida.

 

O segundo livro que diz ter lido foi os “Lusíadas de Camões”. O terceiro surge muito relacionado com este, que naturalmente frequenta estes portos lusófonos todos. Depois de viver entre os “selvagens” um ano, o autor dirigiu-se para “Alenquer, situada em um banco do mesmo rio, entre os dois grandes lagos Curumú e Surubiú”. “Nessa povoaçãozinha de que não posso lembrar-me sem uma doce melancolia, encontrei um dia, em casa d’uma família indígena, e dentro de um cesto forrado com folhas de bananeira brava, quatro ou cinco livros velhos. Um d’estes era o poema Camões, de Almeida Garrett, edição do Rio de Janeiro”. Aqui se inicia o garrettismo do autor: “li-o, e a essa altura, repetida muitas vezes depois, se devem não só os Cantos matutinos, porém todos os meus modestos opúsculos”. O Camões de Garrett foi, portanto, a obra seminal para o despertar do poeta Gomes de Amorim. Atuou nele como uma autêntica iniciação: 

 

principiei a ver debaixo d’outro aspeto os rios, os lagos, as florestas, e as montanhas. Pareceu-me que as flores derramavam maior perfume, e se vestiam de mais vivas cores; que o céu e os astros brilhavam pela primeira vez aos meus olhos, e que toda a natureza tomava formas novas e sublimes. Julguei entender o canto das aves, o murmúrio das águas, e o gemer da brisa entre as açucenas bravas [...] ouvia dentro de mim uma voz que balbuciava, traduzindo as minhas sensações por meio de palavras cortadas, vagas, incoerentes e ininteligíveis para o mundo, e que eu não sei como nem onde as aprendia! 

 

Por essa transmutação reverte-se o processo, passando a ver-se a realidade, a natureza, em função daquela iniciação pela escrita. A re-visão da realidade a partir da escrita, mas de uma realidade ao mesmo tempo intensamente vivida, é comum a Gomes de Amorim e a Maia Ferreira. No fim do século XIX é comum a Cordeiro da Mata, Eduardo Neves e José Bernardo Ferrão.

 

No caso de F. Gomes de Amorim, a iniciação pela escrita continuava com “Teófilo Gauthier: cada poeta célebre leva consigo o seu segredo quando desce à sepultura”. Trata-se de uma evocação que mantém viva a ligação entre a escrita e a vida pessoal, portanto romântica ainda. Mas, em qualquer das suas identificações literárias, não surpreende este espetro no nosso quadro bibliográfico, muito pelo contrário.

 

O prefácio dá-nos mais informações ainda, que reforçam a perceção de um relacionamento ativo entre o comércio e a literatura. Os circuitos de leitura de que fala (mais estritamente de leitura) eram os das lojas em que andava. Os leitores de que fala eram “o grande número de mancebos illustrados que” dirigiam o “comércio” em Belém do Pará. Afiançava Gomes de Amorim que “entre eles é vulgar o conhecimento dos nossos clássicos”, o que só vem confirmar-se no quadro bibliográfico em que trabalhei. Também se confirma o quadro no que diz respeito aos contemporâneos, ou recentes: mesmo “o mais humilde caixeiro de taverna não ignora nenhuma das modernas publicações portuguesas”. Se isto se passava em Belém do Pará, será de supor que em meios idênticos de Luanda e Benguela se passasse o mesmo, tal como na zona de Recife-Olinda. O que também ficava assinalado pela conhecida constituição de agremiações teatrais e pela representação de várias peças ao longo do século XIX, em grande parte animadas por agentes comerciais.

 

O apadrinhamento de Garrett e de Castilho reforçava o mito romântico. O livro tem no começo uma carta de A. F. Castilho comentando-o elogiosamente. Em primeiro lugar porque nele encontra representadas “todas as espécies de amores” (os do “menino, os do mancebo namorado, os do patriota, os do liberal, os do religioso”). Após a divisão das “espécies de amores” encontra, porém, algo mais original: 

 

a poesia marítima [...] que me pareceu aqui maravilhosa: é um belo género que o meu caro poeta nos criou, e que lhe saiu logo da cabeça adulto e armado como Pallas. 

 

Para além destes elogios a cheirar aos clássicos, Castilho lamenta que o autor não tenha aproveitado mais a “divina poesia” e a paisagem “do novo mundo”. A descrição poética e viva das novas paisagens cativara o exotismo do mestre cego, levando-o a uma posição próxima da de Herculano ao falar de Gonçalves Dias (Franchetti, 2007 p. 55): 


nos poetas transatlânticos há por via de regra demasiadas reminiscências da Europa. Esse Novo Mundo que deu tanta poesia a Saint-Pierre e a Chateaubriand é assaz rico para inspirar e nutrir os poetas que crescerem à sombra das suas selvas primitivas.

 

Curiosamente, é sempre o europeu que vê mais isso e o local o que fica tímido face à paisagem sua. A crítica de Castilho não me parece muito justa, mas o crítico foi levado a compará-lo com Chateaubriand, Cooper e Ferdinand Denis. Não era só exotismo, ou era um exotismo espiritualista, se assim pudermos falar. Mais adiante Castilho retoma a sugestão e pede que, enquanto “lh’as não apagam da memória”, aproveite “aquelas cenas da natureza intertropical, verdadeiro paraíso terreal das fantasias”, mas por uma via autêntica: “torne-se (em espírito só) torne-se América, e volte-nos carregado das palmas que desdenhou colher”. Torna-me a parecer excessiva a crítica, tanto mais que o autor às vezes peca por acumulação cansativa e caótica de motivos tropicais (v., por ex., pp. 82-83), mas é interessante essa transposição “(em espírito só)” para incorporar o “novo mundo”. É interessante porque define uma tentativa que será retomada ao longo do século XX em Angola, por autores portugueses (Cândido Furtado e Ernesto Marecos), residentes (Eduardo Neves) e angolenses (Cordeiro da Matta), em relação à ruralidade e à mulher local. Observe-se esta passagem, a pp. 84-85:

 

Minhas lânguidas selvagens

[.../...]

Não têm na face mimosa

A cor vermelha da rosa,

Nem a alvura do jasmim;

Mas têm a cutis morena

Macia como a açucena,

Mais lisa do que o cetim.

 

Uma passagem polémica de Cordeiro da Matta, já por mim comentada, mutatis mutandis encontra-se parcialmente aqui, porém sem a subtileza do poeta do Quanza: 

 

São tapuyas; mas tão belas

Como as brancas d'além-mar;

 

Logo em seguida intertextualizando com o exílio de Gonçalves Dias: 

 

Seu amor tem mais ternura,

Tem seu falar mais doçura,

Seu olhar mais languidez.

Ninguém as vence em carícias;

Ao amor dão mais delícias,

E mais doce embriaguez.

 

O que diz do "rio famoso", a pp. 86-87, ganha em ser comparado com as vibrantes estrofes de José Bernardo Ferrão ao rio Quanza, tanto pelo que apresentam em comum quanto, e sobretudo, pelos contrastes. Em comum a visão exaltada do avanço do progresso, que arrancaria o povo índio "à barbaria". Leia-se, em «Ao rio Quanza», de Bernardo Ferrão, esta passagem: 

 

E da tua foz ao teu berço

mandar-te em milhares d'expressos

força, justiça, e progresso,

tres centelhas redemptoras

da tua aurora futura,

que espantará os milhafres,

e fará das hordas cafres

legiões trabalhadoras.

 

Gomes de Amorim visiona

 

Quando os braços do tempo e da ciência

do teu curso domarem a violência,

transformando-te aos olhos do porvir

 

Quando o machado nivelar teus bosques;

quando o ferro-carril abrir teus montes;

quando invadirem tuas grandes fontes

a hidráulica, as artes e o vapor

 

avançando com "o génio do porvir triunfador", "machinas enormes" a revolver "o solo", "com a ciência da luz nova / que te venha arrancar à barbaria"

 

Em contraste a falta, em Bernardo Ferrão, da ecológica perceção do que se perderia com esse avanço. Desde logo, em Amorim, "conhecerás também como a poesia / com a tua rudeza feneceu!" (p. 87). E mais, nessa mesma p. 87:

 

O bafo pestilente das cidades,

A corrupção que o seio lhes devora,

Nos mesmos sítios que percorro agora

Hão de algum dia celebrar festivo!

E tu verás na tez acobreada

Das que são hoje virgens inocentes,

Sucederem-se os beijos impudentes

Às cândidas capelas de jasmins!

 

A presença de Bulhão Pato (1829-1912) é importante pela espontaneidade, colorido e vivacidade dos versos, nisso comuns aos de Gomes de Amorim (de quem foi amigo, partilhando ambos a amizade de Gonçalves Dias (Biblioteca Nacional, 1972 p. 137)), mas sem dúvida mais interessantes, intertexutalizados e melhor elaborados. Ele representava, entre os ultrarromânticos, uma lírica influenciada por Lamartine (que traduziu e reverenciou, mesmo como historiador), já revisitando os clássicos (o ‘modo italiano’ de que fala na carta a Alexandre Herculano no início de Paquita), preparando o parnasianismo com bom humor (e má-língua até, em qualquer ponto entre a de Camilo Castelo Branco e a de Pedro Félix Machado), integrando o folclore popular com naturalidade. Numa das cartas introdutórias da edição de 1866, em resposta à de Alexandre Herculano (de 1856), Bulhão Pato afirma, taxativamente: “A Paquita é um protesto contra a poesia francesa que nos invadiu, e que, privada das harmonias métricas, até nos lança na caricatura d’outra caricatura”. Na verdade, os poetas românticos e ultrarromânticos não se caraterizaram quase nunca por uma linguagem poética simples e quotidiana, próxima da fala, próxima da transparência, simultaneamente rigorosa na métrica e no ritmo, aplicados com racionalidade e escola sem prejuízo da sugestão do sentimento. A dos românticos (e ultrarromânticos) era ainda uma linguagem de pompa (embora de pompa sentimental), ainda forçando inversões, ou elisões em palavras, para facilitar a rima e a métrica, ou o ritmo, ainda formal demais para se aproximar do quotidiano ou do povo, por isso soando forçada a integração do folclore na lírica. Felizmente, não foi este o caso de Bulhão Pato.

 

Além disso Bulhão Pato, pela veia sensual e sobretudo pela veia satírica, aliada a uma adesão muito pessoal às preocupações sociopolíticas (e à revolução de 1848 em Paris e ao Setembrismo português), aliada igualmente a uma aproximação formal ao parnasianismo (deve ter lido Gautier com atenção), a lírica de Bulhão Pato estava mais próxima da geração de Cordeiro da Mata e, sobretudo, da poética de Pedro Félix Machado, do que sucedera com outros companheiros de geração.

 

Cordeiro da Mata era, também, admirador do pedagogo João de Deus, que escrevia uma lírica simples, aparentemente espontânea, de ritmos populares e, no conjunto, próxima do real quotidiano. Tudo isto torna Bulhão Pato simpático, sem dúvida, aos olhos do “poeta negro do rio Kwanza” – como lhe chamava Héli Chatelain. O livro que o tornou famoso foi o poema narrativo Paquita e, precisamente, com esse título mantém-se ainda hoje representado na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda. No Almanach de lembranças para 1866 há também anúncio (não assumido por empresa) das “Digressões e novelas / por / Bulhão Pato” (1864), que se vendiam “no Rio de Janeiro e nas principais livrarias de Lisboa e do reino, ilhas adjacentes, etc.” – nós ficávamos no ‘etc’.

 

Mas o que se encontra diretamente entre nós é um exemplar de Paquita, “com muitos traços da novela camiliana”. Traços, aliás, de outras obras e de outros escritores também, visto que o poema intertextualiza constantemente e o seu autor estava bem atualizado e globalizado. Apesar disso, Paquita veio a revelar-se uma obra única no panorama da lírica portuguesa do século XIX. Desde logo única por causa da sua construção, toda ela feita em convívio, confessada e partilhada – o que se combina bem com o seu cariz muito provavelmente autobiográfico. Se não, repare-se: começou na casa de Alexandre Herculano em 1848 (o autor e o poeta-historiador referem isso no início do livro); foi depois publicada na Revista Peninsular (1855-56), crescendo simultaneamente; foi publicamente acrescentada nas páginas da Revista contemporânea (1859-1864) com pedaços dos Cantos II, III, IV; só foi entregue na tipografia, para publicação em livro, em 1866. Além disso, a sua construção é fortemente assimétrica e de uma hibridez genológica assinalável, pontilhando-se aleatoriamente as cenas e episódios com os mais variados comentários sobre a literatura, as modas literárias da época, poetastros do seu tempo, intervenções sobre o que ele próprio estava a fazer com o livro. Discorria por tudo sempre numa linguagem agradável, quotidiana, fortemente irónica sem ser grosseira nunca e muito bem ritmada. Quando saiu a edição de 1866, ela na verdade colocava os portugueses às portas do parnasianismo, mas ainda sem a rigorosa pauta formal de João Penha e de Olavo Bilac. Não admira que fosse assim: nessa altura ainda boa parte dos ultrarromânticos se começava a publicar. E talvez por todo o contexto a sátira queirosiana, em Os Maias (através da personagem Tomás de Alencar), não teve consequências em Angola, mesmo depois de 1888. 



 

Quanto a João de Deus Nogueira Ramos (1830-1896), a sua influência no século XIX lusógrafo – e grande parte do seguinte – foi, sem dúvida, intensa. Começando pelo Ultrarromantismo – como Guerra Junqueiro, Bulhão Pato e outros – gradualmente se afastou, perseguindo uma linguagem simples, transparente e coloquial, ao mesmo tempo quotidiana e transmitindo percepções e conceções profundas, por vezes novas, da vida humana e da divindade. A sua caracterização foi muito conseguida na pena de Massaud Moisés

 

poeta instintivo, quase só sensibilidade, e sensibilidade subtilmente requintada, utilizava uma linguagem sóbria, fluida, límpida, como se as palavras e o seu correspondente arranjo rítmico brotassem dum movimento automático semelhante à respiração. 

 

No que se aparentou muito com a linguagem do próprio Bulhão Pato (nascido um ano antes). Seguiu, depois do Ultrarromantismo, uma via cada vez mais pessoal, em vez de enveredar pelas rotas pré-definidas das escolas literárias. Com isso – e com o seu génio lírico – atingiu simultaneamente públicos diversos, incluindo alguns ultrarromânticos. Na verdade, a sua lírica é uma grande síntese das correntes poéticas da época (excetuada a que Baudelaire representa) e não me parece “quase só sensibilidade”. Não percebemos o seu esplendor ignorando a noia (no sentido aristotélico) e a dianóia (também no mesmo sentido). A sua lírica não nos limita ao agradável e ao penoso, reconstrói sentidos e conceitos fundamentais: o bom, o útil, o salvífico; o belo; o nocivo – e, sobre todos, o Amor.

 

Além disso, vivendo num século de papel, a sua lírica não deixa de se relacionar criticamente com a bibliografia romântica e sua contemporânea, testando nela os conceitos que redefine, ou usando-a para exemplificar o nocivo e o benefício.

 

Leitor atento e algo místico de Lamartine, João de Deus reforçou, nos nossos líricos, um sentido ao mesmo tempo simples, belo e digno da poesia. Penso que venha daí, numa significativa parte, a influência que exerceu sobre Cordeiro da Mata que, não sendo místico ou religioso, teve instantes de ligação com a natureza envolvente que o aproximaram da experiência mística e relatou-os (três poemas escritos no Tombo em 1881 (Matta, 2001 pp. 118-123)), com transparência que surpreende num poeta por vezes envolto ainda num discurso enrolado, um tanto vago, retalhado por minúcias formais e referências aos mitos da literatura europeia clássica. Ele terá, talvez (é só uma hipótese de leitura que deixo no ar), encontrado em João de Deus, para além do Mestre da Cartilha maternal, um pedaço do caminho que buscava para superar o desgastado ultrarromantismo que dominava ainda a pequena praça de Luanda. Para superar integrando as suas melhores lições, as marcas de conversa natural, as marcas de sensibilidade à beleza pura, ingénua, espontânea, a agilidade e a diversidade rítmicas – traços presentes ainda em Cordeiro da Mata.

 

A sua popularidade e influência devem-se, também, à Cartilha maternal ou arte de leitura. Publicou-se a primeira vez em 1876 em Portugal e, a partir de 1888, o Parlamento português (as Cortes) tornou-a no modelo oficial do método para ensino da leitura. Também Joaquim Dias Cordeiro da Mata a adotou para compor a Cartilha racional para se aprender a ler o Kimbundu escrita segundo a Cartilha Maternal de João de Deus (Oliveira, 1983; Mata, 1892), obra incontornável e cujo exemplo morreu, infelizmente, solteiro.

 

Embora o nome e os títulos de João de Deus não constem das nossas fontes angolanas, é sem dúvida que foi lido nestas plagas da África adusta. Foi o próprio Cordeiro da Mata quem nos deu sinal disso, como vimos. À parte a sua influência, serve-nos ainda a lírica, reunida em Campo de flores, para reforçar uma leitura de correção que já várias vezes fiz. É que João de Deus dá ao tratamento da leveza no andar um tal desenvolvimento que, só ele, ocupa quase todo a parte II da sequência inicial do livro, intitulada «Sede de Amor» (Deus, 1896). Os dois primeiros versos referem a expressão dos olhos (motivo também constante em Maia Ferreira, sobretudo quando fala na mulher africana, ou que eu suponho que o seja). O terceiro refere a boca (mais uma coincidência com o nosso poeta). Os doze versos seguintes dedicam-se ao pé, à leveza do andar. Em seguida volta aos olhos (uma estrofe, cinco versos) e finalmente fala nos dentes e nas mãos (estas no último verso).

 

Outro verso resume, não só o motivo fascinante do pé, também o tratamento familiar de sua amada pelo nome comum de “Maria”, que Maia Ferreira ousara usar em lírica, também ela, sincera. Transcrevo João de Deus: “Já esse lindo pé que tens, Maria! / Esse quadril tão largo e cinta estreita” (Deus, 1896 p. 263). Infelizmente não chegámos a tanta clareza...



 

Tomás António Ribeiro Ferreira (1831-1901), um dos poetas de O novo trovador, manteve muitas vezes a coloquialidade nos seus versos, embora refletindo o estrato social superior em que circulava com linguagem mais elaborada, menos espontânea, mais erudita e mecanizada por cânones milimétricos. Em suma: formal. A influência de Castilho, mesmo de algum Victor Hugo, não favoreceu tanto, neste caso, o estilo de fácil comunicação que se nota em Bulhão Pato ou João de Deus. Ainda assim partilha, com ambos, o predomínio da frase sobre o verso e o consequente uso ou domínio do enjambement ou transporte que vinha já de Chénier se considerarmos os últimos dois séculos, mais ou menos. Ultrarromântico, manteve-se como João de Lemos fiel ao propósito de cantar pátria e Deus, as coisas e crenças da sua terra, como também de reavivar uma lírica tradicional.  

 

O quarteto inicial do poema «A tua voz», das Vésperas, ilustra bem a colocação hesitante da sua lírica entre a artificialidade ultrarromântica, a unidade formal parnasiana e a coloquialidade da poesia após o romantismo francês, acentuada em Portugal a partir dos poetas realistas (Ribeiro, 1880 p. 51):

 

Lembras-te? Ouvi-te recitar um cântico;

Passava a lua a suspirar no céu

E em torno as auras adejavam trépidas!

Que voz a tua e que delírio o meu!

 

coloquialidade de Tomás Ribeiro chega a ocupar poemas inteiros, como por exemplo o conto em verso «Um mocho» (1864), de Sons que passam (Ribeiro, 1884 pp. 111-117), estória dedicada a uma mãe para se contar junto à lareira. Mas essa oscilação entre coloquialidade e artificialidade é que atravessa toda a sua obra, me parece..

 

Tomás Ribeiro foi amigo de Camilo Castelo Branco, escritor cuja linguagem escorreita pode ter sido benéfica para o poeta de Tondela (que lhe dedicou Dissonâncias – a segunda das suas coletâneas de poemas – e lhe prefaciou várias obras) e a quem escreve a carta dedicatória das Vésperas: poesias dispersas (Ribeiro, 1880). O seu livro Sons que passam teve primeira edição em 1868, portanto bem a tempo de Cordeiro da Mata o ler enquanto formava a personalidade literária que lhe conhecemos. O livro-poema que o projetou, em 1862, foi o D. Jaime (D. Jayme) que, ao sofrer injustamente um estrepitoso elogio de Castilho no prefácio (diz que ele rivaliza com Os Lusíadas, o que era um verdadeiro disparate), vem a provocar, ateado o fogo por outros elementos, a famosa “questão coimbrã”. Essa Questão foi um passo importante na afirmação da geração realista de Antero de Quental e Eça de Queiroz, contra o ultrarromantismo dominante. A fratura provocada acredito que tenha contribuído fortemente para que os ultrarromânticos angolanos se afastassem do realismo, numa primeira fase. O que não foi unânime, como passo a expor.

 

Alberto Corrêa (que terá dado nome a uma rua na Vila Alice, em Luanda) refere negativamente o D. Jaime nas páginas do Correio de Loanda, a 22 de junho de 1890; o mesmo livro é citado ainda em O complemento do Imparcial, a 27 de Maio de 1894 – mas aí sem conotação negativa – e o mesmo poeta é referido positivamente por J. Bernardo Ferrão. 

A paródia do Correio de Loanda, e de Alberto Corrêa, vale a pena ser transcrita pela frescura, pelo domínio técnico, pela crítica política também e pelo conhecimento que revela da poesia portuguesa e das escolas literárias da época. Trata-se de versos para receber Tomaz Ribeiro (que terá passado por Luanda nessa altura). O “primeiro exemplo” é “Lyrico – troante”:

 

És tu, meu velho! Meu Thomaz! Meu caro!

Ou sonho ainda que te vejo aqui?!...

Sonho não é, que não me ilude o faro,

O cheiro a essência que me vem de ti!

                  Etc. etc.

 

O segundo é “Philosofico-moderno” (tem, portanto, como alvo o realismo português e Antero de Quental):

 

D’onde vens? Onde vaes? A força que te guia

- responde – onde te leva? Acaso te supões

Impulsionador de ti mesmo. Enganas-te. Confia

Na força universal – na lei das transições!...

- Isto deve estar admirável porque eu mesmo nada entendo do que escrevi! É o systema.

 

O terceiro exemplo é “camoniano-quinhentista”:

 

As nymphas de Loanda mais formosas

Em terra te desejam quanto antes!

Querem contigo, em danças voluptuosas,

Batucar uns batuques delirantes!

Querem quadras d’amor das mais formosas

Que tu sabes fazer, tão palpitantes!

Pois assim julgam ellas que a ventura

Sem danças não existe em noite escura!

 

O quarto e último exemplo parece ter por alvo o naturalismo português, ou a literatura política republicana, pois é “realismo-rubro-sanguíneo”:

 

Conselheiro phantoche! oh lyrico ministro

D’um governo boçal, estúpido e sinistro!

 

(É forte mas é do estylo – decididamente eu tenho queda para tudo)

Aqui tens, aqui tens as terras do ultramar

No abandono cruel em que as deixas estar!   

Estende, se te apraz, a vista amortecida

Por esse chão sem trigo e esse mar sem vida!   

Vê-me esses corpos nus, imundos, estirados,

De pança para o ar, ao sol embriagados!   

Repara na miséria enorme disto tudo

E diz-me que tens feito, oh deputado Entrudo!

etc. etc.

 

depois de largas considerações sobre o assunto, deve acabar a coisa por uns versos assim pouco mais ou menos:

 

E nesse dia então, oh mísero lebreu!

O povo que não dorme, o povo que sou eu,

Irá convulso e doido e alucinado e crú

Correr a pontapé os jagas como tu!

Se querem, encarreguem-me deles que não lhes levo nada: Alberto Corrêa

 

Sobre o autor da alegre paródia, que me fez lembrar passagens da Paquita de Bulhão Pato, não consegui saber nada seguro. É possível que se trate de Alberto Corrêa de Freitas Silva e Carvalho, homem de famílias nobres portuguesas, nascido a 4.1.1861 no Porto (na altura estaria pelos 29 anos). Poeta, jornalista e agrimensor, viveu a maior parte da vida em Angola, por cá teve seus numerosos filhos e faleceu em Luanda, onde foi sepultado, a 17.6.1941. 

 

Apesar dos críticos radicados, a função de secretário-geral do governo da Índia (onde escreveu Jornadas – narrativas de viagem – a peça A indiana e vários poemas das Vésperas), o posto de ministro da Marinha e Ultramar, o de ministro (embaixador)  de Portugal no Brasil, certamente tornavam Tomás Ribeiro mais próximo de Angola, por ter uma experiência colonial, não-europeia quero eu dizer – e por aí ter vivido, como funcionário colonial também, Ernesto Marecos, um seu amigo também com vivência marcante na Índia. Nota curiosa e que ajuda a percebermos a circulação literária na oratura, Serpa Pinto, no périplo de Angola à contracosta, recita ao rei Lobossi (que lhe pedira para falar um bocado em português) três estrofes de «Flores d’alma» do livro-poema … D. Jaime[12].

 

Fora deste circuito, porém, tão colonial ainda, fica difícil de saber, além de Cordeiro da Mata, que outros angolenses teriam lido e apreciado as obras de Tomás Ribeiro: ó doloridos sons, passae! passae! (Ribeiro, 1884)

 

 

Do nosso ambiente bibliográfico pós-romântico participara ainda Júlio César Machado, romancista e autor de teatro (1835-1890). A obra que dele se refere, Cláudio (Machado, 1852), foi a primeira do autor, publicada quando tinha só 17 anos (Bulhão Pato apontava para os 15 anos, altura em que ficou órfão de pai, mas escrevia de memória (Pato, 1907 pp. 74-75)) e é considerada uma peça de adolescência, marcante embora. No entanto, há quem pense que ela constitua “uma das obras mais caraterísticas da sua produção” (Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira, [195-] pp. 764-765) e surpreende a maturidade, a capacidade de observação e de retrato do quotidiano, mesmo a agilidade narrativa num escritor tão jovem. A obra foi saudada por A. P. Lopes de Mendonça, de cuja bibliografia ficaram exemplares na biblioteca do GPL e na do Arquivo Histórico (as obras, importantíssimas para estudar a época e o autor, intituladas Memórias dum doido e Memórias de literatura contemporânea). O folhetim que Lopes de Mendonça lhe dedicou, em A revolução de Setembro (3.7.1852). teria sido decisivo para tornar o livro famoso. Júlio César Machado substituiu, aliás, Lopes de Mendonça como folhetinista no periódico, de acordo com uma nota de Luiz Francisco Rebello publicada na Colóquio-letras e hoje disponível em rede. O facto foi relatado por Bulhão Pato nas suas memórias, o qual conheceu Júlio César Machado aos 15 anos e precisamente em casa de Lopes de Mendonça, que foi seu (de Machado) padrinho literário (Pato, 1907).

 

Júlio César Machado traduziu ainda (Sage, 1885) a História de Gil Braz de Santilhana, de Alain-René Lesage (ou Le Sage), que é uma das obras de referência em toda a primeira metade do século XIX no espaço lusófono. As referências, porém, que vi nas fontes indicam a tradução de Bocage, não mencionando se foi a edição de 1800, ou a de 1808, ou qualquer outra. A tradução de Machado, em “edição monumental”, é de 1885 e já conta, portanto, pouco para nós.

 

Portanto Júlio César Machado, sobretudo com o primeiro livro, havia de chegar a Angola misturado ao pacote ultrarromântico lusitano e com as primícias da superação dos seus limites – que largamente superou na crónica jornalística e de costumes, como também na linguagem dos folhetins. Seria um dos nomes que abria já algumas perspetivas diferentes, ou seja, um nome de transição – equivalente, na lírica, a João de Deus e, no ensaio, a Lopes de Mendonça. A sua linguagem – natural, fresca, objetiva e de uma ironia fina – não era já ultrarromântica. A sua curiosidade, a ânsia de viajar, o interesse pelo novo e pelo diferente, como também uma espécie de realismo inato e bem disposto, o levariam cada vez mais para longe dos ditames de Castilho.

 

Depois da morte do pai, ficou em Lisboa e a mãe regressou à aldeia natal, Durruivos, a sul. Nesse tempo era uma distância considerável: a mãe vinha vê-lo no Inverno e ele passava com ela uma temporada no Verão. Foi nessas temporadas que escreveu um romance cujo título sairia bastante acompanhado pelo século XIX fora e repercutiu na inventiva luandense de Pedro Félix Machado: Scenas da minha terra (Machado, 1862) no caso de Portugal, Scenas d’África no nosso caso. A diegese de Scenas da minha terra não tem qualquer relação com a de Félix Machado. O livro de Júlio César é um livro de memórias, recordações, saudoso, ao passo que o nosso é pura ficção. Deu-se, apenas, a coincidência do título, que de resto se tornou comum no fim desse século tão prolixo e tão prolífico. Mas é de supor que Scenas da minha terra, tanto quanto Cláudio e alguma da colaboração nos periódicos, fossem lidos em Luanda e Benguela.



 

Manuel Joaquim Pinheiro Chagas (1842-1895), enquanto poeta, não possuía as caraterísticas de simplicidade, ritmo e coloquialidade que irrompem já nos companheiros mais conhecidos e mais velhos, em particular João de Lemos, mas também Bulhão Pato, mesmo Tomás Ribeiro – ou, fora do grupo, Gomes de Amorim. Na lírica de Chagas elas apareciam raramente, em grau mínimo, que não bastava para desfazer a impressão de artificialidade e falsificação de um discurso genuíno. Apesar de apadrinhado por Castilho na altura, a sua poesia veio a revelar-se medíocre até aos nossos dias, em que ninguém tem paciência para lhe ler os versos de O poema da mocidade ou de O anjo do lar. Usava, na lírica e em alguma narrativa (por exemplo A máscara vermelha), uma linguagem muitas vezes afetada (cheia de galas e louçanias, se quisermos), muito retórica, extemporânea já face à prosa jornalística, por exemplo, a uma parte da narrativa e em face da evolução do próprio Ultrarromantismo – de que foi epígono.

 

A artificialidade da linguagem e a exageração dos motivos (alguns deles, aliás, pouco dignos) conjugou-se para descartá-lo da literatura interessante da época. Mas houve nisso alguma injustiça também, devida ao desgaste provocado pelas críticas ao Poema da mocidade e ao autor no âmbito da famosa ‘Questão coimbrã’, e devida às poderosas caricaturas posteriores de Eça de Queiroz  (Veloso, 2007) e da ‘geração de 70’.

 

Na verdade, Pinheiro Chagas disfrutou de grande popularidade no seu tempo, como dramaturgo, folhetinista, historiador, tradutor e crítico literário (Ensaios críticos, 1866; Novos ensaios críticos, 1867). A popularidade não atesta a qualidade, como sabemos, mas obriga a reconsiderar a obra, hoje toda relegada ao esquecimento no seu próprio país.

 

Não me parece que tenha sido grande crítico. A leviandade e o excessivo entusiasmo com que elogia Mário, de Silva Gaio, serve de exemplo. Trata-se de um livro oscilante, popularucho e melodramático à medida do público dos folhetins, apostando tudo no efeito de suspense e na lágrima fácil, mas arrastando a suspensão por páginas de História e outras enfiadas como gorduras no chouriço, mal conseguindo ir além dos estereótipos no que respeita à maioria das personagens (e em particular à do negro) e às paisagens exóticas. Pinheiro Chagas elogia-lhe, por exemplo, a facilidade e maravilha com que leva e enleva o leitor a saltar das paisagens portuguesas (essas, em geral, bem retratadas e com descrições poderosas – sobretudo a inicial) para a Índia e para Angola, o que me fez ir buscar o livro. Mas a Índia aparece de passagem, não é propriamente um espaço do romance, é só vaga alusão geográfica e histórica. No que diz respeito a Angola, para onde o protagonista segue degredado, era melhor ignorar o que ele fez por lá. O romance histórico (e Mário é também isso) contrai dívidas com a verdade e contrai dívidas com a ficção artística. Ora, a vida de um degredado da qualidade de Mário, mesmo que perseguido ferozmente por indicação de um tiranete de província e remetido a um presídio extremo, não era como ele a descreve. A personalidade do negro que se torna o grande amigo, protetor e companheiro do protagonista vida fora, nunca sai do estereótipo do ‘preto’ e era de esperar que saísse, pois o autor, na apresentação da personagem, lhe traz uma curta biografia que podia muito bem gerar uma personalidade complexa, roída por conflitos internos (e tensa, portanto), além de extremamente lúcida. Sobretudo geraria uma personagem dinâmica, alterando-se em função das múltiplas paisagens e situações em que se viu envolvido. Mas em vez disso temos o estereótipo do negro: apalermado, indiferente até à sua sorte, servindo o amigo como um cego ao seu dono, infantil, enfim, diminuído mental. A fuga de ambos, do presídio onde eram companheiros até Mossâmedes, é completamente inverosímil, mesmo para quem visse num mapa da época essa rota. Como podia um historiador elogiar este romance, justamente no que diz respeito a Angola? As paisagens, como disse, são outra vítima de Silva Gaio em Angola. Nomeia algumas árvores e arbustos pelos nomes locais, mas logo seguidos por nomes científicos e a maioria só tem o nome científico. Professor universitário e médico, ele deve ter apanhado algum manual de flora angolana, mais algumas descrições científicas de certas zonas, e fez daí uma paisagem que desconhecia totalmente. Gastão Cruls fez o mesmo exercício no Brasil, no princípio do século XX (o livro saiu em 1925). Embora seja polémico o resultado brasileiro, comparado com o de Silva Gaio faz-nos rir da Angola de Mário e para tal comparação remeto o leitor. Finalmente o Rio de Janeiro, que podia ser aproveitado (pelo que já se lia sobre ele, incluindo em periódicos e com ilustrações) para um quadro convincente da cidade após a independência, mas não é nada, não chega, sequer, às sumárias e distorcidas perspetivas de alguns estrangeiros que passaram por lá com leviandade e pouco tempo. Como pôde Pinheiro Chagas elogiar esse trabalho? De resto, uma colagem de restos de ‘romances históricos’ e folhetins muito batidos na época já, com várias peripécias inverosímeis, que só a memória literária do tempo tornaria ‘credíveis’. Fica-se a desconfiar de que Pinheiro Chagas era, de facto, um dos representantes da tal sociedade do elogio mútuo que Eça e Camilo desmontaram de maneiras tão diversas e em lugares distintos. Apesar de, por vezes, estabelecer princípios que pareciam atualizados e deduzi-los para as obras, a sua crítica estava subordinada, principalmente, a isso – e o leitor saía desiludido ao ler algumas das obras aconselhadas.

 

Chagas foi muito popular, também, como historiador e a sua veia de historiador ganha alguma coisa com a do folhetinista. Os seus romances históricos A virgem Guaraciaba (Chagas, 1866) e A conspiração de Pernambuco (Chagas, 1870), que formam juntos os dois volumes de Crónicas brasileiras, de motivação colonial brasileira, reuniam a ambição dessas três componentes da sua personalidade pública de escritor, jornalista e historiador – ainda na primeira fase da carreira literária. É de notar que são, hoje, vendidos no Brasil ambos os títulos e que, por essa via, continuam vivos lá, embora completamente esquecidos em Portugal.

 

Mas a imagem marcante, na fase inicial da carreira, era sem dúvida a do jornalista, engolindo as outras componentes com uma ligeira nuance coloquial. Talvez tenha contribuído para a sua popularidade, mesmo, uma linguagem bem mais divertida, leve, alegre e coloquial nas crónicas de costumes (veja-se o Álbum de costumes portugueses) e de Verão, como as publicadas com Júlio César Machado, relativas à faixa litorânea e hinterland, entre Caldas da Rainha e Espinho (Machado, et al., 1878). Parece-me haver afinidades entre as crónicas jornalísticas de Cordeiro da Mata e de Félix Machado e as deste livro, que aliás vão seguindo uma linha vinda dos jornais de França, já popular com Delphine Gay, que se deu muito bem na sociedade ‘elegante’ portuguesa, com o seu muito quê de folhetinesca e de fútil.

 

Com a projeção jornalística, o apadrinhamento lamentável de Castilho e a, posterior, atuação política, a leitura de Pinheiro Chagas pode, porém, ter sido maior do que vi nas bibliotecas, nos catálogos, ou nos inventários. A sua crítica, não tenho notícia de ser lida em Angola, mas aquela mistura entre a dedução (de princípios ou regras estéticos(as) para o livro) e o impressionismo (do livro para o leitor) não soaria estranha no pequeno meio jornalístico de Luanda, menos dado sem dúvida ao elogio mútuo. A promoção que fez da literatura brasileira terá, também, ajudado a manter a curiosidade sobre a sua crítica literária entre nós, se ela chegou a conhecer-se. Alguma da sua narrativa se terá lido e suponho que as obras históricas. Ainda num espólio de Caconda, de Pedro Freire de França (m. 1899 ou 1900), se encontrou o que foi talvez a sua última obra, uma tentativa disfarçada de recuperação do romance histórico: O naufrágio de Vicente Sodré. Portanto foi lido em Angola mesmo no fim do século.

 

Subscrevera, entretanto, uma vida política ligada ao “ultramar” e à colonização. Foi ministro da Marinha e Ultramar em três anos de governo fontista, entrando após a remodelação que tirou do Ministério do Interior a Tomás Ribeiro. Pinheiro Chagas negociou com a Inglaterra dossiers difíceis, como o do rio Zaire. Co-fundou a Sociedade de Geografia de Lisboa, o que decerto contribuiu para divulgá-lo na então colónia de Angola, a par de outras medidas tomadas enquanto ministro: início da ligação telegráfica entre Angola e Portugal, contratação para a construção do caminho-de-ferro de Ambaca, promoção do abastecimento de água a Luanda, renovação do impulso colonizador do interior de Mossâmedes, organização do Distrito do Congo, estímulo de viagens de exploração científica ao interior de África.

 

Por curiosidade acrescente-se que o Poema da mocidade vinha anunciado na secção de anúncios do Almanach para 1866 pela Livr.ª A. M. Pereira. Mas o que dele ficou, ficará, para a História literária (em sentido amplo) e se gravou na mente de muitos leitores de jornais foi, será, o historiador popular da História de Portugal, o escritor das Crónicas brasileiras (em particular A conspiração de Pernambuco) e a memória do ministro desenvolvimentista das colónias. Entre nós, das fontes por mim consultadas, consta só mesmo O naufrágio de Vicente Sodré. E, para naufrágios, basta.



 

De António Cândido Gonçalves Crespo (1846-1883), nome e biografia sobejamente conhecidos, não encontrei nenhuma obra da época nas bibliotecas e arquivos de Luanda e de Benguela que tenho consultado. Isso podia constituir um óbice, atenuado embora pelo facto de constar do catálogo do Arquivo Histórico Nacional, em Luanda, a terceira edição das Miniaturas, de 1884, com prólogo de Teixeira de Queiroz. Uma vez que não me facultaram o exemplar para análise, nada pude concluir acerca da sua circulação por Angola nesse tempo. Mas temos pelo menos de falar em familiaridade poética intensa neste caso, mesmo não se podendo assegurar influências. As influências, aliás, interessam menos do que a totalidade em que se integram. Significa mais a faixa de coincidências entre uma semiosfera de fronteira (marítima e antropológica) em África e outra globalizando-se (portuária também), para experimentarmos aí as possibilidades de distinção e de universalidade em que nasceu uma literatura entre as diversas artes verbais com que dialogava.

 

Gonçalves Crespo era, de resto, um homem de fronteira também. Verdadeiramente ‘americano português’, ou ‘português brasileiro’, ou vice-versa, nasceu e cresceu entre várias tradições e escolas poéticas. É sabido isso, que nascera no Rio de Janeiro (filho de um comerciante e dono de roça português, radicado, com uma moça mestiça) e viera para Portugal com 14 anos, onde viveu, casou (com D.ª Amália Vaz de Carvalho), escreveu e morreu. Quem deseje confirmá-lo, facilmente encontrará em rede informação biográfica satisfatória. De realçar o facto de se definir o poeta, perante Machado de Assis, como brasileiro e “de cor”, em carta que o romancista guardou. O facto se deve confrontar com a recusa da Academia Brasileira de Letras em integrá-lo por se ter naturalizado português. Uma das conclusões a tirar do confronto é que a sua foi mais uma personagem híbrida, lusófona, lusógrafa, transversal – e, por isso, difícil de enquadrar no esquema mental a que se faz corresponder um país e sua Academia em dado momento.

 

As afinidades da nossa lírica finissecular com a de Gonçalves Crespo são várias: a transição que fez da última poesia romântica para o Parnasianismo, com visitas aos clássicos como era de bom tom entre parnasianos; a habilidade, agilidade e inquietação rítmica, no entanto resultando sóbria no final; os episódios curtos e elucidativos de um tipo de situação, de personalidade, mesmo de sociedade (Crespo, 1882 pp. 70-71), que também veremos em Pedro Félix Machado (embora o luandense mais voltado para a sátira e o disfemismo); o regresso poético à infância, mesmo quando em quadros que não declara como da sua infância; a abordagem natural, objetiva, da racialidade inserida nos contextos próprios e, portanto, significativos ideologicamente.

 

Numa carta a Bulhão Pato, ultrarromântico amigo de Maia Ferreira e também de Crespo, este escreveu: “és um antigo, e um moderno.” Não só caracterizava o seu amigo, marcadamente ultrarromântico mas abrindo a lírica romântica à linguagem mais simples e coloquial que veio depois, bem como demonstrando uma agilidade e inquietação rítmicas invulgares no seu grupo. Tomava também, Gonçalves Crespo, amável como sempre, uma posição ambivalente perante as fortes polémicas havidas (a carta é de 24.10.1881) e distanciava a posteridade da classificação dos poetas entre “antigos” e “modernos” (Pato, 1894 p. 276).

 

 

São figuras em trânsito as que têm facilmente este alcance de perspetiva além da sua época e além da sua escola. Neste sentido assume particular importância para nós a sua ligação à lírica de Heine. Heinrich Heine foi um poeta alemão quase parisiense. Nasceu numa família judaica, chegou a converter-se ao protestantismo (sem convicção), teve simpatias por Napoleão, quase foi marxista, abraçou o Saint-simonismo, politicamente sempre desiludindo-se e perseguindo uma revolução utópica de sensualidade, amor e justiça social. Essa é a parte que menos interessa para o caso, exceto no que demonstra de uma personalidade transitiva. A relação de Heine com o Romantismo se caracteriza pela mesma transversalidade. Nunca deixou de ser profundamente romântico mas compreendia que o romantismo alemão já não tinha uma linguagem, nem soluções estilísticas e motivos que servissem para os novos tempos. O seu estilo, na poesia lírica, é magoado mas contido, tendencialmente límpido, musicalmente apurado e guardando ainda qualquer coisa da linguagem divina e helénica de Hölderlin, pouco reconhecido em vida, para variar. Assim a lírica de Heine, de forma geral, havia de constituir uma passagem natural do Romantismo para o Parnasianismo, tão natural que não sei se deram por isso. Torna-se, portanto, significativa da personalidade poética híbrida, amável e transitiva de Gonçalves Crespo a ligação com a poesia de Heinrich Heine. O leitor interessado nesta ligação deve ler atentamente, pelo menos, os «Números do Intermezzo», que o poeta luso-brasileiro dedicou a “Louise de Almeida e Albuquerque” (Crespo, 1882 pp. 23-63). São em menor quantidade que os do inspirador alemão; vão, porém, muito além do seu intertexto, constituindo pequenos poemas e quadros autónomos em face dele. Pode ler-se, também, depois e com ligações a Castilho, «As ondinas» (Crespo, 1882 pp. 119-121).

 

 

Note-se que foi Gonçalves Crespo dos primeiros parnasianos, entre lusos e brasileiros. O próprio Bulhão Pato, espírito inquieto e convivente, interessou-se pelo periódico onde se lançou o parnasianismo português, A folha, dirigido por João Penha e colaborado pelo luso-brasileiro. Ali “foi que li os primeiros versos do poeta das Miniaturas e dos Noturnos” (Pato, 1894 p. 279). Bulhão Pato fala do poema «Alguém», elogiando, a propósito, o cultivo “com extremo” do português, mas o poema, justamente famoso, mostra igualmente como era Gonçalves Crespo capaz de captar o sentimento romântico. Tanto quanto o seu mais jovem amigo, Bulhão Pato coincidia no reconhecimento das “inteligências cultas e de ordem superior” e na rejeição “de um enxame de vaidosos […] ignorantes crassos, chilros de miolo, e moralmente leprosos” de que estaria cheia a “geração moderna” também. Aliás, os retratos biográficos feitos por Bulhão Pato se caracterizam por uma constante preocupação de justeza nas avaliações e caracterizações morais. Mesmo quando se referia a pessoas que podia ter como inimigos, ou que desconsiderava em muitos aspetos, ele procurava reconhecer-lhes o que tinham de válido, sendo impiedoso, por vezes, com os defeitos, outras procurando compreender a sua génese sem com isso os desculpar.

 

Colocado, assim, num ponto relativamente equidistante, o memorialista encontra num soneto de Miniaturas “uma paisagem digna de Virgílio – um cair da tarde, naquela natureza exuberante, de modo que rivaliza com os maiores mestres!” (Pato, 1894 p. 281). Sem dúvida um grande elogio para um parnasiano, mas sobretudo o retrato de um poeta que, sendo sentimental, afetuoso, era também de uma exigência formal e de um nível de intertextualização com os clássicos igualmente notáveis para qualquer época. Bulhão Pato valorizava nele essa exigência formal, com a sua convivialidade elegante (que tinha quando queria): “o poeta dos Noturnos prestava à forma todos os desvelos do verdadeiro artista.” Louvava-lhe o sentido de equilíbrio, a distribuição do rigor formal por todo o poema, sem arcaísmos, nem palavras obsoletas, nem rimas extravagantes e desusadas, “todo o verso na elegância e correção da estrutura lhe merecia igual cuidado”. Tornava-o, assim, ao novel poeta parnasiano, exemplo de “bom gosto” – expressão muito polémica naqueles anos ainda.

 

Realçava também o uso que fazia Crespo do alexandrino. Contrariando Castilho, Pato aconselhava a fazer-se o alexandrino (caso se quisesse mesmo fazer) com muita cautela, por não o achar apropriado à língua portuguesa e porque facilmente os poetas caem na monotonia usando-o (Victor Hugo que o dissesse, não só os realistas e alguns outros parnasianos). Repare-se nestes dois versos (de um poema só em duetos (Crespo, 1882 p. 67)):

 

Defronte, uma donzella, o rosto meigo e afflito,

Num extasis adora o pallido proscripto.

 

O alexandrino está, como de preceito, num ritmo de 6’6 perfeito. Cada parte (ou hemistíquio), porém, repare-se como se constitui: 2’4 ; 4’2 | 2’4 ; 2’4. O segundo verso podia ler-se, também, como 2’4 (mas a rima interna e tónica entre “meigo” e “extasis” puxa pelo ritmo que marquei) e tornava-se mais monótona a estrofe, no entanto salva pela ambivalência rítmica e pelo jogo de sons a que já Gonçalves Dias dava tanta importância.

Vejamos agora a estrofe seguinte:

 

O teu sonho nupcial, franzina morgadinha,

Tam cedo se desfez, ó misera e mesquinha!

 

É dos raros versos forçados de Crespo (“nupcial” conta só duas sílabas ali), mas o primeiro hemistíquio soma 3’3 e os restantes o habitual 2’4.

 

Passemos, ainda, à seguinte:

 

No burel escondeste o viço e a formusura,

E desmaiaste, flôr, no chão de uma clausura!...

 

Sem forçar o ritmo, Crespo usa novamente 3’3, seguindo-se o dominante 2’4. Mas, no segundo verso, faz 4’2 seguido por 2’4. Temos uma estrofe que diversifica ainda mais o ritmo interno dos hemistíquios e mantém, por esse truque hábil, a vivacidade, a frescura do ritmo geral, da métrica e da estrofe. Se lermos os alexandrinos de Victor Hugo veremos que, pelo contrário, o que neles se preza é a mais completa monotonia, de quando em quando estragada por algum verso mal cozido e, muito raramente, por uma variação incontornável. Leia-se, apenas para exemplo, o começo do poema «Le Pont», o primeiro do Livro Sexto de Les contemplations. O ritmo dominante é 3’3|3’3. Só raramente surge 4’2, logo seguido por 3’3. Quando não, surge um verso incaraterístico, ou seja, um metro de 12 irremediáveis sílabas métricas.

 

Esta atenção crespiana aos aspetos e variações formais, corporizando, por eles também, o movimento, a mistura, a instabilidade, mas integrando-os no cânone, cria o efeito sugestivo de um conjunto regular, bem desenhado, bem definido, como um prédio ainda no escritório do arquiteto, sem no entanto se desenhar um edifício monótono. Acho que este era um dos segredos da poética de Gonçalves Crespo.  

 

É também formal o aspeto que primeiro nobilita João Penha aos olhos de Crespo, num soneto dedicado a Augusto Sarmento: “Nervoso mestre, domador valente / Da Rima e do Soneto português” (Crespo, 1882 p. 94). No conjunto, o retrato poético de João Penha concentra-se na versatilidade (além da habilidade formal e descritiva) e complexidade, no paradoxo da sua personalidade, literária mas ainda biográfica. As analogias definidoras da personagem vão buscar-se à China (a minúcia, transparência e método), à Andaluzia (a paixão) e… à “quermesse”. A diversidade de referências caracteriza também o próprio autor do retrato.

 

Ele se assume como tal: uma personalidade cruzada. Fá-lo com naturalidade e destaque desde o início: as Miniaturas apresentam como autor “António Cândido Gonçalves Crespo / natural do Rio de Janeiro” e são dedicadas ao seu pai. O primeiro poema («A bordo»), dedicado “ao meu amigo e mestre J. Penha”, é já exemplo das afinidades que tem connosco: o poema é uma composição de miniaturas. O primeiro quadro é o do mar, o segundo é o do piloto adestrando o sextante, o terceiro tem por figura principal “Mariquita, a mulata”, bailarina estonteando os marinheiros na estória de um velho narrador em Buenos Aires (Crespo, 1871 p. 6):


Que a vissem, como eu vi, dançar boleros,

O corpo requebrando;

A saia curta; as mãos, postas nas ancas;

Os olhos atiçando...

Que valente fragata!

Valia mais de certo, que dez brancas,

Mariquita a mulata!


Os restantes quadros desse macropoema de Miniaturas são, como seria de esperar, relativos a personagens as mais diversas, pois o navio é a metáfora do mundo (sobretudo o mundo atlântico) em viagem para o futuro. Nelas aparece (Crespo, 1871 p. 11), com a mesma naturalidade que as outras,


[…] a miss escuta o canto

Arrastado, monótono, e choroso

De uma robusta negra, que balança

Na rede fluctuante uma creança.


As Miniaturas prosseguem esse levantamento de quadros, alguns evocando em nós a possível infância do autor. É de reter e explorar uns poucos, por exemplo «A Sesta», em que a Sinhá retratada pode ser a “crioula” mãe do autor (Crespo, 1871 pp. 14-17). O soneto «Quadro africano», de Eduardo Neves[13], salvaguardadas as profundas diferenças e a muito menor intensidade estética, faz uma evocação parcialmente semelhante, que termina embora em disfemismo, mais ao jeito de alguns fechos de sonetos de João Penha. Eduardo Neves tem, de resto, nos seus sonetos, alguma familiaridade com o parnasianismo português de A folha, que não será despiciendo explorar no futuro, mesmo porque o sabemos convivendo no Dondo com Cordeiro da Mata, Bernardo Ferrão, Carlos da Silva e outros.

 

Os quadros miniaturiais – e, por vezes, as vistas gerais – de Gonçalves Crespo, em que se pintam naturalmente as personagens ‘de cor’ também, não são socialmente inocentes. São naturais mas intencionais. Ou seja, aquilo que se representa é considerado natural, na medida em que “é mesmo assim”, a Sinhá “cercada de mestiças, no terreiro”, etc., mas o momento e a perspetiva escolhidos, a seleção dos motivos e a sua disposição no conjunto, mostram o quanto essa naturalidade, por si, denuncia uma injustiça. O poeta não precisa de nos dizer mais nada, como faz em outros poemas. Na pungente e sublime transfiguração da «Mater dolorosa», também não precisa dizer nada: o que sabemos da História da época e da própria vida do autor é bastante para imaginarmos todo o enredo que deixa aquela mãe daquele jeito na praia olhando o mar, “quando se faz ao largo a nave escura”. A estrutura da descrição cuida de tudo. Repare-se no primeiro verso de cada estrofe: o da estrofe inicial o citámos acima e difere dos outros dois. Os outros dois descrevem aspetos magníficos, luminosos, puros:

 

Dos céus a curva era tranquilla e pura (2.ª estrofe)  

Nas ondas se atufára o sol radioso (3.ª estrofe)

 

Os versos introduzem conteúdos correspondentes e, no final, regressamos, pela consequência, à causa dela:

 

E aquella pobre mãe, não dando conta

Que o sol morrera, e que o luar desponta,

A vista embebe na amplidão das vagas ...

 

Também não é preciso dizer-nos porque não deu conta, nem do que deu conta. A última imagem retoma a primeira e fecha o quadro. Juntem-nas: “quando se faz ao largo a nave escura / a vista embebe na amplidão das vagas”. O soneto se torna, portanto, não circular, mas espiral, ou espiralado, ou espiralar. Uma espiral de dor em que a sugestão do sofrimento ganha um reforço insuperável na descrição da beleza natural e pura do sol, da lua, do mar, em pleno contraste com uma tristeza que nem sequer dá por isso. Esse contraste resume a posição ‘ideológica’ do autor acerca do tipo de episódio que terá causado a imensa tristeza materna.

 

Podemos supor que a «Mater dolorosa» fosse a mãe de Gonçalves Crespo, certamente essa foi a leitura comum no tempo, conjugando-se o texto biográfico e o texto literário. Não sei, não conheço esses detalhes biográficos e o poema não me pede isso, apenas permite a conotação. Mas podia ser a mãe do sobrinho de Eduardo Neves que este e o irmão, combinados, embarcaram para Portugal às escondidas, para estudar (a mãe não queria afastar-se do filho). Podia ser a mãe de um escravo ainda. Ou de um pobre emigrante, criança ainda. Ou podia, simplesmente, ser “a triste e linda Ébo”, fitando banzada o mar “na praia do Quicombo”, envolvida pela “noite primaveril / acompanhando os escravos / que morreram no Brasil”. Ah!, sim!, entrámos entretanto no século XX, isto é Tomás Vieira da Cruz, enfim, cada enciclopédia pega nos versos e os leva, porque são universais.

 

O que interessa é que o poeta puxa para foco do drama, não propriamente a cor, mas o choque da mãe que vê o filho partir e sente que é para sempre. A cor é-nos trazida pelo contexto com que ativamos o poema.

 

O mesmo tipo de recurso, em que num meio paradisíaco por aparência se refere todo um drama social e pessoal, é usado por António Cândido, mais do que uma vez, em vários poemas e, também mais do que uma vez, em «A sesta», por exemplo nesta estrofe (Crespo, 1871 p. 16):

 

A rêde nos ares de novo fluctua,

E a bella a sonhar!

Ao longe nos bosques escuros, cerrados,

De negros cativos os cantos magoados

Soluçam no ar.

 

Sim, vamos outra vez para o século XX, revisitamos Viriato da Cruz:

 

A menina da roça

chega à janela

e na estrada branca

a vista alonga...

- “É o carro a vir?”

Não... é o bater compassado

do aço de enxadas

dos negros na tonga...

 

Raras vezes Gonçalves Crespo desfaz a intensidade da sugestão como aqui parece que Viriato começava já a desfazer (e, na sequência do poema, ele mantém a suspensão do significado sempre neste ponto – daí também as afinidades com os versos de Crespo). Em poemas como «Ao rabequista / Eugénio Degremont» e «As velhas negras», a condição do negro escravizado e levado para longe foi diretamente retratada, aludida ou, mesmo, trabalhada. Mas não era o propósito principal: os textos organizam-se, um em função de um objetivo pedagógico, o de realçar o valor e a necessidade do trabalho na arte; o outro em função de um quadro típico. O motivo do negro surge, num caso, para exemplificar aspetos da vida, ou naturais, que se podem assemelhar ao som da rabeca; no outro ele tem a função de contraste, na linha do mesmo contraste e função que teve no Viriato da Cruz do poema acima referido («Rimance da menina da Roça»): enquanto a menina (“Sinhá”), dentro da casa grande, ouvia um poeta exaltar a magia das noites em Portugal (ironia, talvez, sobre João de Lemos), as velhas recordavam cá fora, sentadas no batuque, a pátria de que foram forçadamente retiradas, as suas danças em África na juventude. É o contraste que diz tudo, de maneira que as frases em que o poeta alerta para o sofrimento injustificável da ‘raça’ nem seriam necessárias, apenas servem para reforçar o sentido estabelecido pelo contraste e não deixar que o leitor, distraído, pense em significados diferentes.

 

É esta maneira de compor que torna desnecessário o discurso direto sobre o que pensa Crespo das condições dramáticas do negro escravo, ou do trabalhador da roça. O critério compositivo que lhe subjaz, tão perfeitamente conseguido, apresenta-nos uma conclusão inevitável; é isso que me leva a dizer que o poeta fala das pessoas ‘de cor’ e dos seus dramas com naturalidade. Ele mostra, limitando-se ao quadro natural e costumeiro, limitando-se a uma pintura que parece transparecer a realidade pura, mostra o quanto é injusta e injustificável a condição do negro escravo, das mestiças que não são sinhás e das negras transplantadas.

 

Outro exemplo saliente, para a naturalidade com que foca personagens ‘de cor’ e seus dramas, confronta-se com o poema «Negra» de Cordeiro da Mata (saído no Almanach para 1884, pp. 124 (Matta, 2001 p. 100)), que se assemelha ao quase homónimo «A Negra», de Crespo (Crespo, 1882 pp. 129-131; Crespo, 1897 pp. 310-312). Ora «A Negra» não tinha feito parte das Miniaturas, apareceu nos Noturnos, cuja primeira edição é de 1882. O mais provável é Cordeiro da Mata ter lido o poema aí (Crespo, 1882 pp. 129-131) – mas possivelmente mais tarde.

 

As semelhanças são as seguintes:

1.  uma estrofe com distribuição rimática igual

a. a distribuição rimática é, no entanto, uniforme no luso-brasileiro e multiforme no angolense, como já tendia a ser em Maia Ferreira;

b. por esse critério multiforme de composição é que a distribuição rimática não coincide em todas as estrofes;

c. a estrofe com distribuição rimática igual à de Gonçalves Crespo é a primeira da segunda parte do poema de Cordeiro da Mata;

2.  o elogio da alvura dos dentes

a. foi, no entanto, ainda por muito tempo, um tópico na descrição da negra ou do negro – e não só;

b. Crespo fala da alvura dos dentes e diz que os admira quando a vê falar; Cordeiro da Mata quando “os lábios entreabre” (na primeira secção do mesmo poema);

c. Faustino Xavier de Novais tem uma expressão mais semelhante à de Cordeiro da Mata: “tinha de marfim os dentes / tão alvos, tão refulgentes” – mas não se refere a uma mulher negra (nem refere qualquer outra cor de pele);

3.  o elogio das “formas” (“gloriosas” em Crespo e “celsas” em C. da Mata);

4.  a adjetivação da imagem feminina como “seductora”;

5. a escuridão como motivo para representar o medo associado à cor negra:

a. “Teus olhos, ó robusta criatura, / Ó filha tropical! / Relembram os pavores de uma escura / Floresta virginal” – Gonçalves Crespo;

b. “Negra! negra! como a noite / d'uma horrível tempestade” - Cordeiro da Mata;

6.   a comparação da mesma cor negra com o ébano

a. já funcionalizada localmente por Cândido Furtado «No álbum de uma africana» e por Álvaro Paes no Jornal de Luanda, que Cordeiro da Mata leu atentamente.

 

A estruturação dos motivos e do sentido dos poemas é bem diferente nos dois autores, como também as imagens usadas e o tópico do branco no qual a negra pensa, estruturante em Gonçalves Crespo, mas que nem sequer aparece no nosso poeta. Aliás o poema de Crespo surpreende pela modernidade, originalidade e sensualidade das imagens (Crespo, 1882 p. 130):

 

Teu corpo é forte, elástico, nervoso.

Que doce a ondulação

Do teu andar, que lembra o andar gracioso

Das onças do sertão!

 

Há neles, quase, uma antecipação de Fanon, por essa fixação da negra no branco (em itálico no livro), apaixonada por ele ao ponto de se recordar dele até pela branquidão da lua, triste, escondida, inquieta, nem reparando na inveja que as sinhás têm dela…

 

Por nem sequer abordar o motivo, é muito provável que, ao escrever os seus versos, Cordeiro da Mata não tivesse lido os do luso-brasileiro. Retomamos, assim, a importância das afinidades, das intersecções, acima da importância das influências. Mas isso não quer dizer que, a partir do Quanza, o nosso “poeta negro” não tivesse lido o poeta “mestiço” português e brasileiro. E um dos pontos que os ligava era, precisamente, a sua negritude.

 

Cordeiro da Mata mostra conhecer Gonçalves Crespo citando-lhe os Noturnos, num texto publicado no Almanach para 1895 (portanto, já depois da morte), a pp. 261 (texto localizado na Barra do Quanza, onde falecera). O que ele cita é o famoso quarteto «Num leque», talvez o mais romântico dos poemas de Crespo, onde, em decassílabos heroicos, se lamenta “a noite mais escura”, que é a que sentimos quando amamos e não somos amados (Crespo, 1882 p. 19). Aliás o tópico da mulher insensível é comum também nos dois, embora ambos fossem conhecidamente mulherengos… É bastante provável que tenha lido bem os Noturnos e se tenha identificado com algumas passagens: recordações da infância, cenários tropicais (deve ter gostado de ler «As velhas negras», por exemplo (Crespo, 1882 pp. 151-154)) e, mesmo, o “morno sensualismo” de que fala Fidelino de Figueiredo (Figueiredo, 1924 p. 101).

 

Parnasiano, Crespo traduziu Théophile de Gautier («A nuvem»), em quatro quadras suficientes para um sultão, por ciúmes de uma nuvem, assassinar a sultana. Este poema remete para um dos motivos mais originais talvez na sua lírica – o que se prende com os árabes, ou os norte-africanos, envolvendo estórias de sangue. Na lírica de Cordeiro da Mata o motivo também surge, mas especificamente pela existência dos haréns…

 

Gonçalves Crespo era amigo de Júlio César Machado, outro autor presente na rede de leituras angolenses e que, por isso, referi. Dedica-lhe um soneto piedoso em Noturnos, intitulado «O velhinho» (recorde-se que Júlio César Machado, oito anos depois da primeira edição de Noturnos, partia para o horizonte eterno “cortando as artérias — que tragédia aquella” (Pato, 1894 p. 48)). O soneto figura um velho saudoso dos tempos em que era o mais belo e bem quisto dos homens… Crespo ainda compôs um soneto sobre João de Deus (dedicado a Antero de Quental), escritor particularmente admirado por Cordeiro da Mata. Dedicou novo poema («Flor do pântano» (Crespo, 1882 pp. 106-107)) a Bulhão Pato, um soneto ‘moderno’, de motivação social e linguagem coloquial, com seis sílabas métricas em cada verso. A solução estrófica e o nome do homenageado eram conhecidos pelo vate de Icolo e Bengo. Dedica outro soneto (este em alexandrinos, «No jogo das Canas») a Camilo Castelo Branco (“Em garbosos corcéis da Arábia cavalgando…” (Crespo, 1882 pp. 122-123)). Homem sem dúvida elegante e cordato, dedica um poema, de motivação histórica, a M. Pinheiro Chagas («As primeiras lágrimas de El-Rey» (Crespo, 1882 p. 134)), como também a Castilho (via Heine). O conjunto das dedicatórias e evocações enquadra-se bem no meio literário lisboeta da época, na transição do Ultrarromantismo para as escolas imediatamente posteriores. Aproxima-se também facilmente das citações, alusões e evocações dos nossos líricos do século XIX e da literatura que terá circulado em Angola nesse tempo. 

 

Outro motivo comum, menos de estranhar, é o da mulher bela mas sem coração, recorrente em Cordeiro da Mata, presente também em Gonçalves Crespo (Crespo, 1882 p. 28) e no romantismo francês, como demonstrou a popularidade de Les filles de marbre, drama em cinco actos “mêlé de chant par Th. Barrière et L. Thiboust”, de que há uma edição parisiense de 1872. Isso liga, ainda, os dois a Heine, que muito se queixa do mesmo. Porém, tal investigação será demorada e cheia de armadilhas, porque o tópico é muito comum em toda a História da literatura.  


Um nome hoje desconhecido vem de circuitos exteriores ao ultrarromantismo e também se manifestou entre nós: é o de Teixeira Bastos (1856-1902), poeta, jornalista, médico, ensaísta que foi discípulo e amigo de Teófilo Braga, além de contemporâneo de Cordeiro da Mata.

 

A ligação entre T. Braga e T. Bastos não é só importante pela partilha de opções filosóficas, mas pela partilha de tarefas relacionadas com a crítica literária: ele fundou, com o professor e amigo, o periódico Era nova: revista do movimento contemporâneo (1880-1881), onde colaboraram J. Leite de Vasconcellos, Júlio de Matos e outros. O órgão foi um dos mais poderosos instrumentos para a instalação da filosofia positivista, nos diversos ramos científicos, em Portugal (e, portanto, nas suas colónias). Ambos dirigiram, também, a Revista de estudos livres (1883-1887), que prosseguiu na tarefa de propagação e consolidação do positivismo, do republicanismo e da esquerda de então. Essa revista foi publicada simultaneamente em Portugal e no Brasil, havendo em cada país diretores próprios. Parece, pois, haver nela a preocupação de lusofonia, mais que de portuguesia.

 

As preocupações comtianas levaram Teixeira Bastos à tentativa de escrever uma poesia filosófica e pedagógica, no sentido de conduzir os leitores ao progresso da Humanidade. Pode haver alguma sombra disso na lírica de Cordeiro da Mata, em geral um romântico nas soluções formais, nos tópicos e no léxico. Mas o próprio Teixeira Bastos veio a criticar o Realismo-Naturalismo, que então já caía em retratos de pormenor insignificante, cansativo, em intrigas esquecidas da tese do romance de tese, em suma, já caía na banalização. No entanto, o seu primeiro título foi Rumores vulcânicos (lírica) e não me espantaria vê-lo encimando um poema de Cordeiro da Mata, embora sinalizando conteúdos diferentes dos do intuito revolucionário do jornalista e escritor português. 

 

Teixeira Bastos é referido por Machado de Assis, na sua crítica literária, como “poeta ultramarino”. Mais adiante inclui-o entre os poetas da aspiração revolucionária em Portugal (Teófilo Braga, Guilherme de Azevedo), portanto considera-o português. Acredito que “ultramarino” apareça ali no rigor semântico do termo: tendo como origem, ponto de referência central, o Brasil, Portugal é ultramarino, tanto quanto Angola. Não vi nenhuma referência biográfica ligando Angola, o “Ultramar” (então português) e Teixeira Bastos. É, porém, verdade que trabalhou num projeto jornalístico luso-brasileiro (mencionado acima) e que a sua última obra (de crítica literária) se intitulava Poetas brazileiros.

 

Parece-me que a ligação de Cordeiro da Mata a Teixeira Bastos é episódica – e ainda bem, porque uma aspiração à justiça e ao progresso da Humanidade, como lembra Machado de Assis, não chega para escrever poesia. Passará, talvez, essa ligação pelo estímulo também de Gomes Leal, do Gomes Leal panfletário, politicamente empenhado, que é triunfalmente citado no poema «À poesia moderna», cuja epígrafe é tirada desse primeiro livro (de versos) de Teixeira Bastos, Rumores vulcânicos (1879) – obra dedicada a Teófilo Braga e que se destinava já a acabar com as instituições caducas e a substituí-las pelo vigor “positivo” e “luminoso” da “vida” e da “coruscante” justiça. A verdade é que versos como “do povo a lida e dos povos as auras”, de Cordeiro da Mata, numa composição programática, me parecem resultar desta rede de leituras ‘novas’ em que se inclui Teixeira Bastos.

 

O livro deste médico lusitano, bem diferente de Silva Gaio, subdivide-se em «Ecos filosóficos», «Lavas da revolução» e «Auras do porvir». Quer esta estrutura, quer os conteúdos veiculados pelos poemas são estranhos à lírica de Cordeiro da Mata, que só em «À poesia moderna» se aproxima, rítmica e estroficamente, do padrão do publicista português. A influência (ou confluência) do divulgador português não terá, portanto, passado de uma “hesitação”, como reconhece o prefaciador da re-edição dos Delírios, Eduardo Bonavena (ou Nelson Pestana).

 

A identificação com T. Bastos passará antes por um estado geral das mentalidades naquele momento, mesmo em Angola, e quiçá pelo facto de ele ser republicano, talvez maçom, igualmente um pedagogo destacado e um socialista, que veio a publicar, na col. “O Ideial Moderno: Bibliotheca Popular de Orientação Socialista” (dirigida por ele e pelo maçom Magalhães Lima) o livro A dissolução do regímen capitalista (Bastos, 1897). Havia, de forma geral, a intuição da necessidade de uma mudança profunda, eventualmente radical, que várias escolas de pensamento político procuravam dirigir. Ainda que não a circunscrevesse uma identidade partidária, havia a mesma aspiração de contribuir para o “progresso da Humanidade” rumo ao “resplendente sol” do espírito racional e da justiça social. Essa aspiração genérica tomava corpo também nas críticas à Igreja, aos dogmas do catolicismo, aos padres, de que foram veementes arautos Guerra Junqueiro e Gomes Leal – poetas cuja lírica investiguei para procurar paralelos com a nossa (Soares, 2012).

 

Dessas críticas nos dá eco, em versos populares (refiro-me a ritmos e estrofes populares portugueses e brasileiros), um obscuro poeta, muito comercializado porém no fim do século XIX e princípios do seguinte. Era desses nomes hoje completamente esquecidos, que nunca subiram à ribalta dos cânones e da ‘sociedade literária’, mas cujas peças o povo gostava de ler – chamando povo a comerciantes, empregados de comércio, alguns operários, pequenos proprietários, etc. Chamava-se António Florêncio Ferreira, sendo natural de Coimbra e dos seus versos tirou Cordeiro da Mata uma quadra para encimar, a jeito de epígrafe, o poema «Súplica», datado de 1876. Na nota introdutória ao livro Trovas: canções de amor, o autor refere que as suas obras andam esgotadas. O quarteto (em decassílabos, verso pouco usado no livro Trovas) virá, porém, de outro título. No livro Trovas o poeta popular critica também a Igreja, a ideia por exemplo de que Deus condena e castiga eternamente, bem como que a Igreja sirva bem o rico (pensado como potencialmente injusto) e desdenhe o pobre (visto como obrigatoriamente justo e injustiçado). É mais por aí, reagindo a esse tipo de injustiças e contradições, que Joaquim ria Mata se entusiasma com as propostas positivistas, socialistas e, consequentemente, de uma poesia militante e partidária. Formalmente, porém, como no restante conteúdo, as quadras populares de A. F. Ferreira não apresentam parentesco nenhum com os poemas de Cordeiro da Mata.

 

 

No que diz respeito ao Brasil, as identificações e intertextualizações não foram menos intensas, principalmente na primeira metade do século XIX.

 

A menor delas dá-se, talvez, com um nome desconhecido entre nós hoje, Domingos Gonçalves de Magalhães (1811-1882), poeta-filósofo, médico, político, diplomata, Visconde de Araguaia. O seu nome figurava nos anúncios do Diário de Pernambuco de 1840 e 1842, mencionando-se a “excellente edição franceza” dos Suspiros poéticos e saudades e é, portanto, uma presença coincidente. Não ocasional. O seu livro, junto com o artigo «Discurso sobre a História da Literatura Brasileira», vieram sintetizar “um feixe de propostas que se concretizará com a prática do indianismo” (parece que mais tarde rejeitada pelo autor), inspirando-se provavelmente em Ferdinand Denis (Candido, 2002 p. 26). Não sei se o “feixe de propostas” se reduz ao “indianismo”, nem o contrário (se o “indianismo” se reduz ao “feixe de propostas” de Gonçalves de Magalhães), mas a passagem reconhece a importância que teve a obra do poeta-filósofo na época.

 

Mais tarde ele foi combatido por diversos motivos, desde a crítica decisiva de José de Alencar a A confederação dos Tamoios (de 1856), livro pretensioso e defeituoso, que foi geralmente mal recebido. Sílvio Romero aponta-lhe a dedo o ser “teólogo e metafísico”, portanto não “científico”, para além de mau escritor – o que, aliás, o próprio Sílvio Romero também era. A escola representada por Romero foi perdendo força e hoje critica-se já, só, a falta de qualidade, ou melhor, de intensidade artística e estética dos seus versos. É certo que há neles, às vezes, um tom declamatório que se torna patético, mas às vezes apenas e patético também num sentido negativo. A sua linguagem tem essas e outras afinidades com uns poucos versos de José da Silva Maia Ferreira, apesar da confessa admiração deste por Gonçalves Dias e apesar das muitas composições em que se afasta do tipo de linguagem de Gonçalves de Magalhães. Acredito que a literatura angolana ganharia em vivacidade se a tivesse marcado mais Gonçalves Dias, que foi lido em Angola (não havendo indícios de os angolanos terem lido Gonçalves de Magalhães, embora ele vendesse bem no Rio de Janeiro e no Recife). Apesar disso, não estou seguro da total ausência de qualidade estética em Gonçalves de Magalhães. Inclino-me, bem mais, a pensar, com Antonio Candido, que ele “foi um caso interessante de renovador sem força renovadora.” (Candido, 2002 p. 26) Mas não só. Foi também um escritor um tanto relaxado no que diz respeito ao rigor estilístico, à medição do efeito estético e sentimental, à manipulação dos referentes histórico-antropológicos e à elasticidade, à amabilidade da língua portuguesa. Posto isto, o que podemos argumentar em seu favor e sobretudo em favor do livro inaugural do romantismo brasileiro?

 

A sua é também uma poética de conceitos e o paradigma estético da época no Brasil inclinou-se, até hoje de resto, mais no sentido das imagens concretas, objetuais, ou de afetos e sentimentos, do que de imagens conceptuais, que exprimem sobretudo sínteses abstratas e não objetos concretos, ou sentimentos e emoções pessoais. De maneira que os seus versos, para terem interesse, pedem-nos que reparemos nas imagens em função do pensamento que as ordena e lhes descobre uma orientação, uma teoria do ser e da verdade e, só por aí, sentido poético. Encontramos, ainda assim, na sua poesia, muitas imagens concretas, bem brasileiras e bem conseguidas, que o romantismo de Gonçalves Dias e José de Alencar desmultiplicou. Mas é verdade que se trata, sobretudo, de uma poesia filosófica, didáctica também, mais do que de uma lírica voltada para a intensificação do prazer estético, ou para a atenção ao carácter artístico das palavras (ao jogo de sons, de ritmos, às relações conotativas entre os vários níveis em que podemos trabalhar uma palavra, uma frase, uma estrofe).

 

O poeta-filósofo tivera um princípio diferente dos românticos brasileiros mais conhecidos, o que deriva em parte de pertencer a uma geração anterior (ele nascera em 1811 e, por exemplo, Gonçalves Dias em 1823 - sendo, portanto, só quatro anos mais velho que Maia Ferreira. Isto, numa época de mudança, determina diferenças irrevogáveis). Ele publicara, como Garrett e Castilho, poemas ainda arcádicos (Magalhães, 1832). Isso, porém, não o impediu de se tornar às vezes um autêntico romântico, exposto à inspiração mais do que à regra. Só que o “às vezes”, aqui, tem muito peso. O que o inspirava não inspirava muita gente, fora do seu círculo de admiradores, todos ainda marcados pelo período de transição do Neoclassicismo para o Romantismo. Se foi posteriormente rejeitado, com A Confederação dos Tamoios e pelo rumo que a poesia tomou, foi certamente por opções de escola e tradição literária ou política, mais ainda pelo fraco alcance estético, não pelo aprofundamento, enraizamento e desenvolvimento do romantismo no Brasil se o considerarmos fora dos ditames de escolas e de grupos. Os Suspiros e as Saudades não se limitam a rejeitar a musa antiga, nem a ser declamatórios. O que não quer dizer que se mantenham interessantes – infelizmente, o mesmo ocorre com muitos versos de Maia Ferreira. 

 

Os seus poemas expõem, de acordo com a sua filosofia, uma teoria cristã da inspiração, nesse aspeto na linha de Chateaubriand (1768-1848), mas encontram símiles brasileiros para representá-la. A teoria da criação poética de Magalhães não parece simplesmente, como a de Gonçalves Dias e muitos outros, aceitar que a inspiração vem de Deus. Ele vê a poesia na elevação da Terra aos Céus (por inspiração não seria exato: por efeito de uma “imaginação [que] se dilata” na “viva similhança” que Deus recolherá quando “tudo extinguir-se”) e na criação do respetivo anjo, invocado logo no primeiro poema, que tem essa missão. Chateaubriand não está longe, de facto, mas interessa-nos aqui uma distinção.

 

As teorias da inspiração poética podem imaginar dois movimentos em direções opostas: num primeiro, o influxo desce do céu até ao poeta, que o incorpora, vem da transcendência para a presença corporal; o segundo é o imaginado por Gonçalves de Magalhães e que se teoriza por exemplo em Teixeira de Pascoaes, quase um século depois. Aí há um fluxo da imanência para a transcendência; a elevação criativa gera o anjo que se torna entidade intermédia pela qual a inspiração vai passar necessariamente. É, sem querer forçar interpretações, é esta a mais próxima do legado banto. Note-se que, entre vários povos bantos de Angola pelo menos, o lugar dos mortos e dos espíritos era (antes da hibridação com o cristianismo) inferior, abaixo do ar, dentro da terra – como de resto foi para os romanos, que assim imaginavam o inferno e ainda assim o imaginou Dante. Os espíritos dos mortos ascendem de dentro da terra para o ar que respiramos e aí nos falam, portanto a partir daí podemos inspirar-nos neles, dar-lhes voz. É por isso que, ainda hoje, em muitos países onde se faz sentir o efeito do legado banto, as pessoas jogam as primeiras gotas de uma boa bebida alcoólica para o chão – devendo ser o mais velho (o mais próximo da morte e o mais sábio da vida) a fazê-lo. É para aplacar os espíritos, que moram debaixo da terra, onde nós todos iremos também morar, porque aí é o lugar, ou abrigo, dos espíritos. É do magnetismo telúrico assim gerado que salta a faísca inspiradora e criadora do anjo da poesia. Traduzido para o cristianismo, dá algo parecido com a teoria da criação de Domingos Gonçalves de Magalhães.

 

Os resquícios de fontes clássicas europeias, em termos que soassem a falso, rareavam – apesar de os versos não nos arrebatarem. A mesma «Invocação» faculta-nos um exemplo de como as fontes clássicas influíam na obra. Enquanto modelo (de livro e de poema), pode ter sido extraída às fontes clássicas, aos Lusíadas e outras epopeias, mas esta «Invocação» é um apelo da alma ao anjo da Poesia, não quer nada com musas de papel oriundas da Grécia. A exaltação do sentimento, do íntimo, da meditação, da inspiração, condensa os traços tipicamente românticos e origina um vocabulário corpóreo, a que o Brasil dá sem alarde, sem folclore, mas também sem génio, uma cor e uma textura particulares. É por esta via também que o Romantismo se torna libertador para os escritores das colónias e ex-colónias da época. Faltou-lhe, tão somente, expressão poética, arrebatadora, onde cintilasse a conceção teórica.

 

O poeta-filósofo olhava, sem dúvida, para a natureza brasileira com uma visão romântica, escrevesse na Europa ou não. O trovão de que nos fala o poema não era o mesmo de Bocage nem, talvez, o de Santa Bárbara. Era um trovão brasileiro, que se podia ouvir no Rio de Janeiro e nas serras próximas, verdes, húmidas, exuberantes. Mas ainda assim havia nele qualquer coisa que um romântico europeu facilmente partilhava e que percebia afetivamente. O que permitia universalizar uma teoria da inspiração brasileira figurada pelo seu trovejar. A inspiração não é, portanto, aqui um sopro, suave, delicado, mas o estoiro, o estrondo, a explosão do som, o reboar dos ecos na distância por força das interações telúricas e etéreas, no lugar intermédio ocupado pelas nuvens e pelos raios.

 

Os versos dele não foram capazes de nos fazer sentir isso, mas a teoria que os antecedeu, sim. Nos versos do médico brasileiro, esses ecos são flores a desabrochar pela emocionada voz dos poetas, estão perfumados, a explosão é agora de som, de cor, de beleza, de luz também. Uma explosão benéfica. Assim ele realiza, com imagens românticas e brasileiras, o ideal cristão e neoclássico da coincidência entre o Bem, a Verdade e o Belo, associando-o à intensidade romântica representada pelo trovão. Mas o que nos trazia de interessante, novo e universal era o trovão, um deus brasileiro que não coincide, seja por onde for, com flores e doçuras, alterna com elas. Os exemplos podiam seguir-se. Para o estrito objetivo de um capítulo já longo e para um autor não mencionado nas fontes angolenses tornam-se, porém, dispensáveis. O que interessa é que o romantismo de Gonçalves de Magalhães tinha a sua brasilidade incorporada sem alarde, numa atitude linguisticamente moderada, mas que também mostrava ao romantismo europeu o que ele podia ser em terras brasileiras. Era mais ou menos isto, a partir da sua versão:

 

A linguagem moderada por vezes ganha vida, corrente, flui. Quer as inversões sintáticas, latinizantes, quer as mitologias clássicas, aparecem pouco, não chegando a calcinar a ondulação geral das frases. Os versos estão muito menos enfatuados ou enrolados que os de Castilho, ou mesmo do Garrett anterior às Folhas caídas (por exemplo o do poema ao corpo académico); ou, ainda, de um Herculano pétreo, grave, rural, quase transmontano. Retoma-se, por outro lado, sem grande sinal de fratura, a tradição recente da epopeia brasileira, tão elogiada por Garrett e Castilho, sobretudo pela frescura e autenticidade da língua e dos motivos tropicais, pela afirmação da brasilidade e pela sua conjugação com uma cultura globalizada mas atualizada e territorializada, ou seja: glocal. 

 

 

 

Outrossim, Gonçalves de Magalhães usava um vocabulário que, não sendo oco nem antiquado, colocava problemas de enquadramento aos seus contemporâneos. Porque usava um vocabulário que depois os parnasianos, por motivos diferentes os simbolistas, valorizaram: raro, mesmo novo para o dicionário, mas possível, verosímil, sugestivo e preciso pela sua história, pela definição própria e no contexto poemático. Ou seja: um léxico especializado e escalpelizado – mas a frio. Podia confundir-se com preciosismo, alguma vez isso terá acontecido, não o sendo substancialmente. São versos em que se sente pulsar um sentimento que se desenvolve pensando-o, e pensando-o com uma propriedade lexical rara, ainda que esfriada. A sua presença reforça, por esta via, um romantismo hoje quase ignorado mas que foi popular na época: em geral católico, de linguagem viva mas ponderada, espiritualista, enfim, o romantismo aparentado no seu íntimo a Chateaubriand, mas ao qual faltaram a graciosidade, o calor humano e a mais ampla liberdade estética do francês.

 

A visão que tem Gonçalves de Magalhães de que “o mistério” é “o fundo do homem”, essa, foi partilhada por muitos outros românticos. A identificação que faz da vontade com a liberdade veio a tornar-se comum nos liberais, embora muitos deles tivessem uma ética utilitarista (que pode não ficar muito longe dessa identificação). O romantismo que vingou no Brasil foi porém o de Gonçalves Dias, o autor ao mesmo tempo das «Sextilhas de Frei Antão» (escritas no Brasil e publicadas com os Segundos cantos em 1848 (Dias, 1848)) e da lírica indianista ou nativista brasileira. O nacionalismo de Gonçalves Dias foi de facto vincado, mais que o de Gonçalves de Magalhães, por mitos nativistas. Naquele momento (o do Império, na história brasileira), em que era essencial dissociar o Brasil e Portugal e sem criar inimizades, a origem arquetípica da nação era a pré-colonial, cuja base antropológica desaparecia, já não constituindo perigo. O próprio D. Pedro II promoveu os estudos etnográficos, o levantamento das tradições endógenas, “ao lado da criação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) e do Arquivo Nacional”. A postura de Gonçalves Dias tomava “a miscigenação como um fator positivo da cultura”, mas radicava (por “evolucionismo”) “a origem da raça brasileira apenas na tradição indígena, pensada como um momento mítico”, perturbado no seu progresso natural pela introdução das ambições, da escravatura e do dinheiro, trazidos pelos portugueses e que teriam estagnado a nação. Porém, o paradigma técnico de Gonçalves Dias, a sua conceção da poesia enquanto mistura de inspiração com trabalho, e de linguagem enquanto mistura de naturalidade com estilo, a sua compreensão da importância dos clássicos (de várias línguas) assimilam, no meu parecer, o legado lírico de Gonçalves de Magalhães. É por isso que, ao desmerecê-lo, fala nestes e em outros aspetos técnicos, poéticos e não propriamente em princípios teóricos divergentes, ou ideológicos, ou partidários.

 

Gonçalves de Magalhães falava, apesar do seu nacionalismo, em “civilizados” e “selvagens”, achando sempre que os modelos haviam de ser de “civilizados” (leia-se: de europeus e de eurodescendentes). O paradigma estruturante do brasileiro para o poeta-médico, por diferenciação política, se radicava aparentemente na era pré-colonial – o mesmo que para Gonçalves Dias. É, no entanto, o brasileiro urbano do seu tempo, europeizado culturalmente, membro da mais alta classe do império o leitor implícito da sua enunciação. O que não se tornou a diferença maior entre os dois, pois se esmiuçarmos a poesia do maranhense vemos rapidamente que ele era um “civilizado”, embora com raízes locais “nas florestas virgens da América”[14] (seriam virgens para quem lá morava antes?). As dicotomias em que se estribou a crítica posterior e contemporânea (fé / razão; sentimento / razão; teologia / ciência; metafísica / verdade, etc.) e o reduzido poder estético de sugestão é que foram afastando o romantismo brasileiro de Gonçalves de Magalhães. O próprio Gonçalves Dias ainda se preocupa em “casar […] o pensamento com o sentimento”, como confessa no «Prólogo» aos Primeiros cantos. Essas e outras dicotomias, Gonçalves de Magalhães em parte resolvia com uma relação frutuosa entre a lírica, alimento do intelecto, e a filosofia, estruturadora dos sentimentos e da sua interpretação. Era, como não podia deixar de ser, um esforço guiado pela procura de conexões razoáveis entre eixos aparentemente opostos. Só a oposição entre o local e o universal se manteve talvez oportuna neste caso – e era comum aos dois pais do romantismo brasileiro. A componente ‘universal’ estava, essa sim, muito condicionada pelo mundo euroamericano, o que não era de estranhar na altura mas, por oposição ao nativismo de Gonçalves Dias e à sua crítica à escravidão, funcionou contra Gonçalves de Magalhães posteriormente. Penso que também em Angola.[15]

 

Para fazer a transição de um para outro poeta, julgo oportuno citar uma carta de Gonçalves Dias a D. Pedro II, escrita em setembro de 1856, na qual também comenta João de Lemos (Dias, 1964 pp. 195-199). Antes de o fazer e por aviso, refiro que, na carta seguinte ao imperador (de 6.10.1856 (Dias, 1964 pp. 200-202)), por imperativo de consciência, diz Gonçalves Dias, ao reconhecer que fora demasiado severo com o médico-poeta, que desconhecia a polémica em torno do autor no Rio de Janeiro. Aproveitará, então, para denunciar o gosto que tinha a comunidade literária brasileira em falar mal dos seus próprios escritores. Nessa segunda carta, de passagem, refere que ninguém teria dado importância, na capital portuguesa, à tradução da Eneida feita por Odorico Mendes, mas acha que só dois escritores locais tinham condições para avaliá-la: Alexandre Herculano e Rebelo da Silva – já comentados neste meu livro. Um deles, vai reaparecer em breve.

 

O imperador enviara um “poema” de Gonçalves de Magalhães e o maranhense escrevera-lhe, em resposta, a 13.9.1856. Tecia considerações de vário interesse. Primeiro dizia que “já tinha assistido a uma leitura desse poema, que o seu autor, em viagem para o Brasil fizera em Paris, ao Sr. Odorico, estando eu presente”, o que é um dado biográfico-literário interessante e mesmo lendo este livro se percebe porquê.

 

Nessa altura, Gonçalves Dias escusou-se a comentar, elogiando os dotes de Magalhães para a declamação:

 

(…) abstive-me de formar juízo sobre a obra, porque a declamação do Sr. Magalhães, que em verdade é excelente, é artística de mais para por ela se poder aquilatar o merecimento de alguma obra literária.

 

E, desde logo, aproveita para recordar o poeta de O trovador:


Lembrava-me de um dos meus contemporâneos de Coimbra — João de Lemos — que muitas vezes e apesar de reiteradas experiências nos enganava: o quer que fosse que lhe ouvíamos por último, isso nos parecia o melhor, de quanto êle até ali tinha feito; mas quando aparecia o objeto do nosso entusiasmo, então eram as admirações de não termos percebido uma imensidade de pequenas faltas, que desapareciam com a declamação.

 

Em Portugal diriam: “como quem não quer a coisa…’ o poeta começa logo a introduzir uma sofisticada agulha na pele parceira. Repare-se que, para certas conceções de poesia e correspondentes métodos criativos, o poema é composto ouvindo-se e, portanto, com declamação interior. Por isso ele resulta bem declamado mas, visto à lupa e não ouvido, comparado com os cânones que esquematizam as impressões auriculares, repara-se então o quanto é imperfeito. Ao falar nisso comentando o trovador português, ele indiretamente nos diz que o mesmo sucedia com o seu compatriota – que não me parece compor de ouvido.

 

Em seguida, retoma o poema – como ele próprio escreve. Diz que o livro de Magalhães não produziu qualquer efeito em Portugal. E que tal se deve ao facto de a comunidade literária local estar despreparada (por preconceituosa) para “apreciar a grandeza selvagem da poesia America­na”. O que também equivale a, reforçando a sugestão de imperfeição, dizer que o colega escrevera qualquer coisa grande mas não devidamente trabalhada. Insinua-se. O segundo motivo é ainda patriótico: os portugueses não gostariam de ouvir “algumas expressões”, ainda para mais “procedentes de um tapuia”.

 

Até ali, Gonçalves Dias acha que fez uma análise impessoal e começará a dar a sua “opinião” de seguida. Alerta, no mesmo passo, o imperador para que ela não se deve à “rivalidade de ofício” (sublinhado do autor)… Resumindo os aspetos técnicos – os mais seguros por enquanto – ele acha


a versificação frouxa, de quando em quando imagens pouco felizes, a linguagem por vezes menos grave, menos própria de tal gênero de composições, e o que entre esses não é para mim menor defeito, o tamoio não tem muito de real nem de ideal.

 

É, sem dúvida, muito objetivo e nada, na crítica, se deve propriamente à filiação romântica ou, mesmo, a qualquer outra. Vemos um poeta analisando o trabalho do outro enquanto poeta, compositor, através dos critérios próprios da arte. Fá-lo com maldade, provavelmente, mas sem descambar na maledicência, apenas apontando as deficiências do poema – e aqui se percebe ser A confederação dos Tamoios – confrontando-o com o seu próprio modelo, ou tipo.

 

Gonçalves Dias enumera os inverosímeis de A Confederação, mostrando simultaneamente o conhecimento que tem da cultura dos índios (a qual, suponho, não seria toda igual). Termina com mais uma cena biográfica e literária, contextual, interessante:

 

Estávamos uma meia dúzia em casa do Sr. Herculano, e eu tratava de defender o nosso poeta, que estava ali sendo vítima de exageradas censuras: exageradas, digo, quando se aprecie o seu merecimento em geral. Recitei o começo daquela ode:  

Quando da noite o véu caliginoso

Do mundo me separa,

E da terra os limites encobrindo

Vagar deixa a minha alma no infinito

Como um subtil vapor no aéreo espaço

etc.

É belo isto.

 

Sem dúvida. Mas é, também, sintomática a citação da ode, pois a linguagem não me parece típica do romantismo, brasileiro ou lusófono, sim a imagem, acompanhando e evocando o sentimento implícito e é justamente essa a colocação, penso, de Gonçalves de Magalhães no romantismo brasileiro.

 

A cena, porém, não tinha terminado. Faltava-lhe isto:


O Sr. Herculano, que não entrara na discussão, abriu o volume, leu duas cousas, e achando alguma que lhe não agradava, voltou-se para mim com alguma vivacidade, mandando-me que matasse ao meu colega. 

— F. (disse-me êle) mate-me esse homem; mate-mo. 

Era a mesma voz que eu tinha ouvido no começo da minha carreira, e como da primeira vez, rompendo espontânea da abundância de coração. Vim para casa ler os borrões do meu poema. Estou com mais medo, mas também com mais vontade de o acabar.

 

A passagem é elucidativa por si própria. O leitor lhe achará o essencial do que ela significa, mesmo em face do que já escrevi neste livro. Por gosto, realço apenas alguns aspetos que, principalmente, se prendem com a receção. Em primeiro lugar os círculos românticos portugueses frequentados por Gonçalves Dias, apadrinhados por um dos fundadores do movimento. Em segundo lugar a imagem de um Herculano impulsivo, dominado pela “abundância de coração” (eufemismo generoso), aliás “espontânea”, repentina. Em terceiro lugar a importância que tivera, para o próprio maranhense, a avaliação de Herculano “no começo da minha carreira”. Em quarto e último, essa mesma importância reforçada, humildemente, com o medo, refletindo para o livro que Gonçalves Dias estava a escrever. Que livro seria? Talvez Os timbiras, que escrevia já fazia nove anos e de que, no seguinte (1857), publicou “os primeiros quatro cantos”, em Leipzig, junto com os Cantos e o Dicionário da língua Tupi. Fica, portanto, reforçada uma hipótese de leitura para Os timbiras, que é a de neles se refletir a leitura e receção lisboeta e romântica de A confederação dos Tamoios.

 

 

Quanto à lírica do maranhense António Gonçalves Dias (1823-1864) e à do douriense João de Lemos (João de Lemos Seixas Castelo Branco, 1819-1890), leituras que muito provavelmente Cordeiro da Mata frequentou, são para nós amplamente significativas – e, sobretudo, a primeira. Ambos, por sinal, estão referidos positivamente nas Memórias da literatura contemporânea de Lopes de Mendonça, sendo reportados (sobretudo João de Lemos, é claro) a O trovador, como o fez muito mais tarde Bulhão Pato Sob os ciprestes (Pato, 1877) e nas Memórias. Lopes de Mendonça recorda “a pena do Sr. Alexandre Herculano”, que “consagrou n’um artigo esta brilhante aparição” (Mendonça, 1855 p. 313), a de Gonçalves Dias, um dos “perfis literários em 1855” (Mendonça, 1855 p. 306ss). Uma apreciação crítica positiva de Alexandre Herculano já na altura sancionava qualquer novo escritor definitivamente no meio literário lisboeta e lusófono. No caso, isso tornou mais rápida a progressão da fama do poeta brasileiro, sem dúvida o mais literário, o mais artístico dos do seu tempo no Brasil (Bosi, 1975 p. 118). O próprio Gonçalves Dias se mostrou reconhecido, empenhado mesmo, quando reimprimiu os Primeiros cantos e com tal reconhecimento elaborava o «Sirva de Prólogo» a essa edição (Dias, 1857). No texto, ele dá-nos ainda duas notícias importantes: conheceu pessoalmente Alexandre Herculano, que muito o impressionou (já vimos isso mesmo nas suas cartas); tinha Francisco Gomes de Amorim (o fiel discípulo de Garrett) por “meo bom amigo” e é ele que envia ao poeta, para “Dresde” [Dresden], nas margens do Elba, o texto de Herculano. Gomes de Amorim não foi, portanto, como pensamos muitas vezes, aquele anexo incómodo e irregular imposto ao romantismo lusitano pela vaidade do velho Garrett. Ele estava mesmo lá, nesse meio, servindo aliás de ponte entre vários protagonistas enquanto personagem interatlântico.

 

José da Silva Maia Ferreira pode ter conhecido pessoalmente Gonçalves Dias, como já disse aqui. Resumo o que me leva a supor isso: frequentava a sua casa (ou nela chegou a morar?) João d’Aboim, jornalista e poeta ultrarromântico português exilado no Rio de Janeiro (desembarcara em 1848), amigo de Maia Ferreira (nos anos 1848-1849), que o introduziu no meio literário romântico português e carioca, na leitura de O Panorama (1837-1868) – de que ficou em Benguela uma colecção de 1837 (ano do início) a 1842 – na Lísia poética e certamente à leitura de Guanabara (1.12.1849 – [?].9.1856), “uma das publicações brasileiras mais conceituadas de sua época”, que beneficiou do “apoio declarado e irrestrito do Imperador D. Pedro ΙΙ.” (Sant'Anna, 2010 p. 20).

 

Note-se que o último título foi um periódico emblemático para o romantismo literário brasileiro e o respectivo nacionalismo – os dois ainda muito marcados pela formação clássica. Nessa revista colaboraram, entre outros, Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882) – cuja Moreninha saiu em 1844 (Macedo, 1844) e foi logo reeditada em 1845 (Macedo, 1845) – o próprio Gonçalves Dias (um tanto distanciado, é certo), o cónego Fernandes Pinheiro (já citado), Araújo Porto Alegre (1806-1879, pessoa muito apreciada por Gonçalves Dias). Os dois primeiros e o último eram os Directores, no Tomo I. Fernandes Pinheiro aparece como Director também, em substituição de Gonçalves Dias, mas nos Tomos II (AAVV, 1854) e III (1855), onde assina o editorial.

 

Uma nota colocada na p. 188 (Tomo I), que deve ter sido escrita pelo vate maranhense, anuncia o segundo volume de líricas de João d’Aboim, confirmando a introdução do “jovem poeta” no núcleo fundamental do romantismo carioca. Transcrevo-a, para melhor esclarecimento de quem me lê:

O Sr. Aboim se prepara para dar à luz o segundo volume de suas obras líricas: algumas das composições, que vão ser oferecidas ao público, têm, além da sua extensão, belezas que comprovam os contínuos progressos deste jovem poeta. Aguardamos com ansiedade mais esta produção, de que nos ocuparemos com especial prazer, não só pelo interesse que temos pela prosperidade do Sr. Aboim, como para lhe retribuir o particular favor que nos fez com a comunicação de seus inéditos.

Resultante ou não dessa convivência, há poemas de Maia Ferreira em que notória ficou a marca do poeta brasileiro. Gonçalves Dias é citado e glosado nas Espontaneidades da minha alma, livro cuja notícia e leitura se terá prolongado ao longo do século XIX em Angola, mesmo quando criticado. Entre outros sinais da influência de Gonçalves Dias leia-se, para exemplo, o poema «À saudade» (ed. cit., pp. 40-41), que se inicia tendo por epígrafe um quarteto eneassilábico do vate brasileiro. Mas não só:

1.  No primeiro número de Guanabara, saído a 1.12.1849[16], nas pp. 33-34, Gonçalves Dias publica um poema característico, de verso bem ritmado, ágil, grácil, numa linguagem coloquial, intitulado «Olhos verdes». Se lermos com atenção as Espontaneidades, há lá vários poemas centrando o foco sobre os olhos das ‘musas’. Em todos encontramos similaridades com este e, particularmente, em «A uns olhos que eu vi!». Repare-se, apesar das diferenças (Maia Ferreira não segue a estrutura medieval seguida por Gonçalves Dias):

a. O poema de Gonçalves Dias tem como último verso do mote, em cada estrofe, “depois que os vi!”. É evidente a proximidade com o título na composição de Maia Ferreira. Não só: embora não tenha estrutura de mote, no poeta angolano há circularidade e recorrência marcadas precisamente pela reiteração anafórica dessa imagem: “uns ternos olhos que eu vi” (verso 2), “quem sobre eles fitava” (verso 11), “na terra não vi iguais” (verso 13), “por estes que fitei” (v. 19), “em quem os vi” (v. 24).

b. Logo na primeira estrofe, Gonçalves Dias alinha “vi” com “morri”, ligando pela rima, como nas restantes, o último verso antes do mote e os do mote. Maia Ferreira liga, também na primeira estrofe, “uns ternos olhos que eu vi” (v. 2) com “que por eles eu morri!” (v. 4).

c. A diferença está em que Maia Ferreira torna a morrer na 3.ª estrofe (a penúltima, recordando então uns azuis) e Gonçalves Dias não (embora ameace na 2.ª estrofe, mas com um paradoxo: um dos olhos diz vida e outro morte, um loucura e o outro amor; ameaça também na última mas, como diz “não pertenço mais à vida” e está a escrever o poema, não acreditamos nessa morte). Isto prende-se com outra diferença: os olhos vistos pelo brasileiro são verdes, inspiram esperança (embora ele depois desespere); os olhos vistos pelo angolense são “pretos-maviosos”.

d. Em ambos os casos – apesar da diferença na cor – os olhos são conotados com fogo e brilho.

e. Em ambos os casos o poeta sabe que não terá sucesso (embora por motivos diferentes).

f.  Em ambos os casos os versos são de sete sílabas métricas – exceptuando dois dos três versos do mote no caso de Gonçalves Dias.

g. Curiosamente, na 3.ª estrofe, onde compara o que sentiu com os olhos “pardos” e os “azuis”, Maia Ferreira não refere os verdes, nem sequer o verde pardo visto por Gonçalves Dias…

h. Entre os dois poemas há uma epígrafe: no início Maia Ferreira coloca dois versos de João d’Aboim (“J. Aboim”), também heptassilábicos. Dizem: “eu amo os olhos que falam, / que vibram no coração.” Mais uma vez, um poema de Maia Ferreira, para ser compreendido, suscita-nos uma leitura triangular entre Brasil (Gonçalves Dias), Portugal (João d’Aboim) e Angola. Mas não só:

2. Na Lisia poética (AAVV, 1848 p. 48), António Pereira da Costa Jubim publica o poema «Uns olhos», que é mais próximo ainda deste de Maia Ferreira e se baseia todo na rima “vi”-“morri”. Mas, desses, o autor não diz qual é a cor, diz que não sabe, ainda que informe não serem negros, nem azuis…

3. Nesse poema, o segundo verso de Jubim é quase igual ao de Maia Ferreira: “uns lindos olhos q’eu vi” (Jubim); “uns ternos olhos que eu vi” (Maia Ferreira).

4.  Ambos os poetas usam a imagem da infiltração (“infiltram” – “infiltravam”) para designar o como os olhos femininos instilam sentimentos de amor no poeta. Mas, tirando estas três caraterísticas, não há mais coincidências entre os dois poemas. Mesmo a solução estrófica de Maia Ferreira é bem diversa da de Jubim.

5. Maia Ferreira dedica a A. P. da Costa Jubim, cidadão brasileiro, a quem a Lisia poética agradece o ter-lhe enviado o poema, um dos textos imprescindíveis à discussão sobre a sua identidade política: «A minha viagem», com uma epígrafe de Garrett. O apelido Jubim aparece já na altura em contextos indiciando um enquadramento social superior no Império, incluindo licenciados (bacharéis).

6. Fora deste ‘caso’, estão por explorar algumas íntimas afinidades entre imagens da lírica de Gonçalves Dias e imagens das Espontaneidades. Em primeiro lugar interessarão conotações que os relacionam com a sua terra, como por exemplo a do “Soba de tribo selvagem”, ou do “Africano guerreiro e famoso”, que preenchem o lugar e exercem a função dos índios na poesia do maranhense.

7. No mesmo volume da Lísia poética João de Lemos publica um longo poema, de 1847 (pp.42-44), sobre «O que dizem» uns olhos. A comparação dos olhos em que repara Maia Ferreira com estes abre uma via nova a explorar no campo das suas intertextualizações.

 

Já O Panorama se fundou bem antes, em 1837, em Portugal, sendo o órgão da Sociedade Propagadora de Conhecimentos ÚteisPanorama foi muito divulgado no Brasil, em particular no Rio, nele publicando novos autores portugueses e alguns brasileiros também (incluindo Casimiro de Abreu). Como já escrevi, num espólio de Benguela de 1855, de um comerciante português muito rico, figurava uma coleção de números desse periódico, publicados entre 1837-1842 (pode-se postular que Maia Ferreira os tivesse vendido ou oferecido ali? O comerciante e Maia Ferreira, no entanto, estiveram em campos opostos em Benguela). No aspecto que nos interessa, tornou-se um título importante para a osmose entre os romantismos português e brasileiro. Essa função de osmose foi, por igual, protagonizada pelo poeta brasileiro.

 

Como sabemos, Gonçalves Dias era um poeta muito popular (mesmo já pelo século XX), quer no Brasil, quer em Portugal, quer nas então colónias portuguesas e particularmente pela «Canção do exílio». Além de popular, a crítica sancionou-o, tanto quanto os confrades, desde o início. A circulação dos seus versos terá incentivado o nacionalismo e o nativismo dos angolenses, visto ser essa uma das marcas da lírica e da geração de Gonçalves Dias. O facto de ser mestiço (de português, índio e negro), filho de uma relação não-oficial entre um comerciante português e uma cafuza (no significado brasileiro, ou seja: mistura de negro e índio), na altura teria contado igualmente como reforço positivo para a afirmação da nossa elite local.

 

Apesar de nacionalista e nativista, quando estudava em Coimbra Gonçalves Dias integrou-se no grupo de poetas ultrarromânticos reunidos em torno d’O trovador e, depois, de O novo trovador. Emparceirou, portanto, poeticamente com João de Lemos. Escrevi acima “apesar de” porque havia nesse grupo o culto do medievalismo peninsular e o romântico brasileiro participou dele, o que pode parecer contraditório com o indianismo, de que foi a principal expressão lírica. Pode parecer contraditório e faz-nos pensar. Porque é que um poeta romântico e nacionalista brasileiro se interessa, em Portugal, justamente pela Idade Média, aquela mais distante do período histórico no qual Brasil e Portugal estiveram juntos?

 

Quando falamos no nativismo de Maia Ferreira, criticando-o por ter também feito poemas a brancas e loiras (que argumentos!), devíamos compará-lo com as «Sextilhas de Frei Antão», testemunho textual do medievalismo peninsular de Gonçalves Dias, que ele ainda compunha em 1847 (Dias, 1964 p. 99). Note-se, aliás, que chegaram a ser razoavelmente conhecidas essas sextilhas na época, apesar do uso do português arcaico e embora poetas como Álvares de Azevedo as considerassem “difíceis de ler” (Azevedo, 1853 p. XLIV) e Castilho condenasse o tipo estrófico a um tempo enterrado – ou que devia sê-lo, o dos “oiteiros” e das glosas (acho que o poeta-pedagogo não percebeu a relação entre forma e motivos, ou genericamente ‘conteúdos’).

 

Em vez de contradição, porém, podemos identificar continuidades e contaminações. Coloco, pelo menos, a hipótese de o medievalismo ter contribuído para o projeto indianista por um processo de “substituição” – como o nomeia Antonio Candido (Candido, 2002 p. 98), ou como o compreende Sérgio Buarque de Holanda, em prefácio às Obras completas de D. G. de Magalhães: “o índio brasileiro […] foi a maneira natural de traduzir em termos nossos a temática da Idade Média, característica do romantismo europeu” (Franchetti, 2007 p. 59). Digo isso na medida em que o índio pré-colonial colocava-se, na história brasileira, no lugar e no tempo do habitante peninsular antes de a Península se fixar em dois reinos só (como, mais tarde, o sertanejo virá substituir o cavaleiro num processo que atingiu o seu auge, algo inesperado, com Ariano Suassuna). Estes e outros factos tornam-no incontornável no espetro literário dos poetas do último quartel do século XIX em Angola, razão pela qual incluí a sua entre as obras de referência. A comparação das caraterísticas formais da sua obra com as dos nossos poetas, realizada no primeiro volume de Kicôla, confirmou plenamente essa hipótese.

 

A presença de Gonçalves Dias, para além de significativa pelo indianismo e pela integração no ultrarromantismo português, era-o também relativamente aos poemas de linguagem mais solta, contemporânea e com versos bem ritmados. Lopes de Mendonça realça-o (“sobrepujando, talvez, em vigor e frescura poética, aos seus colegas” – de Coimbra e de O trovador), “vigor e frescura poética” dos versos que o confirmaram como “o primeiro poeta do Brasil e um dos notáveis talentos da geração, que se dedica às letras, de ambos os países” (Mendonça, 1855 p. 316). Noutra latitude (e longitude), O progresso, jornal socialista e indianista (A., 1846) do Recife, em 1847, elogiava poemas do maranhense publicados na Sentinela da monarchia, e destacava justamente que as composições “são belas e harmoniosas; raras vezes encontra nelas o leitor essas palavras ociosas, enxertadas de propósito para o complemento dos versos: aí tudo corre suavemente com ritmo, e melodia”[17]. Sem dúvida, no panorama da época…

 

Os seus Primeiros Cantos e o respetivo prólogo são de 1846, embora possam ter sido impressos só em janeiro de 1847[18] - e logo anunciados no Recife por O diário novo e o Diário de Pernambuco, além de comentados O progresso. Nesses, como nos seguintes cantos, apesar da minha concordância com o que dizem os críticos socialistas do Recife e o malogrado crítico português, também encontro muitas vezes um tom declamatório que soa a falso, inversões frásicas disfemísticas, arcaísmos para sustentar a métrica, descrições antiquadas que afetam o efeito de realidade. No fim, dá um resultado parecido com este:

 

Seu viver é batalha aturada,

Dos contrários a traça aventando;

É dispor a cilada arriscada,

Onde o imigo se venha meter!

 

Ou seja: uma espécie (antecipada) de metralhadora com um ritmo de três disparos seguidos de cada vez e uma pausa maior ao fim de cada série de três disparos. Esta linguagem tem algo de marcha forçada, o mesmo metro e ritmo monótonos, o mesmo arcaísmo do “imigo” para ajustar ao ritmo, as mesmas inversões feitas só para facilitar a rima, o mesmo vocabulário gasto das batalhas de papel que podemos encontrar em Maia Ferreira, infelizmente, algumas vezes. Os resíduos clássicos estavam apenas a sofrer o começo do seu processo de erosão e de reciclagem – pese embora a citação muito oportuna de Chateaubriand no início das «Poesias Americanas», que não terá sido percebida na sua extensão formal.

 

Gonçalves Dias cursou Direito em Portugal, mas formou-se inicialmente no Maranhão e as leituras iniciais não diferem muito do nosso quadro bibliográfico – ainda que o alarguem. Em 1833 (assumira “a função de caixeiro e escriturário na loja do pai”) terá conhecido os primeiros livros significativos: a História de Carlos Magno (que se anunciava no Recife nos anos 30 e 40 e era ainda ouvida em Cabo Verde, “à boca da noite”, por Germano Almeida na sua infância, bem como por Eça de Queiroz, a quem foi contada por um casal de criados negros da sua avó); uma História de Portugal cujo autor desconheço; uma biografia não sei de quem. Teve aulas de Latim, Letras Clássicas, Retórica, Filosofia e Matemática. Em 1845 pediu a um dileto e constante amigo que lhe comprasse, entre outras obras, o Romanceiro Português, o Parnaso do Brasil (provavelmente o Parnaso brasileiro), “Byron em tradução francesa (provavelmente a tradução que consta do corpus); os poemas de Ossian em inglês e na versão italiana de Cesarotti; poesias de Victor Hugo, Lamartine, Vigny, Auguste Barbier, Saint-Beuve, Béranger”.

 

Béranger aparece mais tarde em Angola, Lamartine é uma referência comum aos poetas angolanos (curiosamente, em Guanabara Gonçalves Dias publicou uma série longa de longas meditações em prosa), tal como Victor Hugo, o lírico e, sobretudo, o prosador. Vigny (menos, como em Portugal (Garrido, 1871 p. 57)), Barbier e Saint-Beuve é que estão mais distantes. Mas, na bibliografia anunciada no Recife até 1847, não se dá sinal de nenhum deles exceto Byron (também referido em Angola), Ossian (por interpostas pessoas) e do Romanceiro Português de Pizarro. Este é um bom exemplo para medir as diferenças entre um mercado bibliográfico e a procura estética de um seu autor. Diferenças que, tanto quanto as intersecções, nos obrigam a “repensar o corpus de textos com o qual críticos e historiadores têm trabalhado, no sentido de alargar o conjunto de obras consideradas e o campo de interrogações” (Machado, 2001).

 

Como lembra Ubiratan Machado, “mulheres e estudantes formavam a grande maioria do público dos escritores românticos” – o que, sobretudo no que diz respeito às mulheres, não pode ser ignorado em Angola. A elevação a modelos literários de mulheres que rompem com a sociedade e a família em nome do amor, ou de mulheres-heroínas por outro motivo qualquer, ajudou o sexo feminino a libertar-se da situação opressiva em que se encontrava e, nesse aspeto, a literatura foi mais uma vez fonte e não espelho de mudança. Deu-se muito isso com novelas, a maioria talvez do século XVIII ainda, não com a bibliografia romântica ausente dos anúncios do Diário. Por outro lado, esse tipo de público veio condicionar a circulação do livro (por essa via também a composição poética), razão pela qual encontramos diferenças assinaláveis entre os anúncios do Diário de Pernambuco, o leque de leituras dos primeiros poetas românticos de Angola e Brasil e a sua produção literária. A poesia hoje mais interessante para nós talvez também não coincida com o que na época era mais apreciado, embora haja igualmente pontos de intersecção. Mas o que é preciso é vermos, também aqui, o jogo de relações entre autores e seus leitores e em que medida ele condicionava a criação e compreensão de uma obra, ou esta alargava o horizonte de expectativas do seu leitor.

 

Essa relação pode ser estudada no interior dos próprios livros, pelos títulos, pelas dedicatórias, pela menção ao motivo principal de um poema, à ocasião para a qual foi escrito, pelas epígrafes. Para além de passagens dos próprios poemas, claro. Nesse aspecto é significativo o exemplo de Gonçalves Dias, entre sobretudo os Primeiros e os Segundos cantos. Ambos saíram antes de 1850 (limite do período estudado no Brasil). Em se tratando de coletâneas de poemas dispersos e diversos, pareceu-me provável encontrar nelas maior número de casos para comparação.

 

Nos Primeiros cantos Gonçalves Dias recorre algumas vezes a dedicatórias, a menções ao episódio que motivou a obra, ou ao acontecimento para o qual foi escrita. Os casos a apontar são: “O Vate / (No álbum de um Poeta)”[19], “À Morte Prematura / Da Il.ma Sra. D.» / (no Álbum de seu Irmão Da. J. D. Lisboa Serra)” (poema datado: “Coimbra, junho de 1841”), “O Cometa / Ao Sr. Francisco Sotero dos Reis”, “A um Menino / Oferecida à exma. Sra. D. M. L. L. V.”, “A Vila Maldita, Cidade de Deus / Ao seu querido e afetuoso amigo / A. T. de Carvalho Leal”, “Quadras da Minha Vida / Recordação e Desejo / Ao meu bom amigo o Dr. A. Rego”, “Adeus / Aos meus amigos do Maranhão”. Algumas das epígrafes completam a lista, visto que nos propõem também elas um determinado cenário com o qual o poema faz um sentido preciso e particular.

 

Nos Segundos cantos (1848) praticamente não há dedicatórias. O que há são títulos que também desempenham a função de dedicarem o poema e, mesmo assim, não temos muitos casos. Isso não bate certo com o que se passou com os nossos ultrarromânticos e mesmo com Pedro Félix Machado. Nesse aspeto, a evolução de Gonçalves Dias não foi acompanhada por nós. O que bate certo, ou coincide, são os temas, os motivos, a métrica e o ritmo (Soares, 2012).



 

Manuel António Álvares de Azevedo (1831 – 1852), Cordeiro da Mata explicitamente cita o seu mito a par dos de Byron (o grande mito de A. de Azevedo) e de Musset (Alfred Louis Charles de Musset, 1810 – 1857), num dos folhetins publicados no Correio de Luanda, como escreve Hélder Garmes (Garmes, 2006 p. 221).

 

A citação de Álvares de Azevedo pelo nosso poeta não me parece gratuita. Ao longo do primeiro volume de Kicola pude marcar várias afinidades formais entre os dois, às quais acrescentaria o intimismo representado nos versos. Hélder Garmes aponta-o como diferença entre o folhetim de Cordeiro da Mata a que me refiro («Noites de Loanda: episódios da mocidade bohémia») e Macário, “tentativa dramática” escrita pelo confrade brasileiro. Nos versos de ambos não se nota uma tal diferença, mas os textos de Cordeiro da Mata, sobretudo em prosa, são geralmente mais leves (como aponta H. Garmes para o seu folhetim) e sobretudo mais irónicos.

 

A presença de Álvares de Azevedo, no leque de leituras literárias angolenses, havia talvez sido estimulada por algumas coincidências com o verso de Maia Ferreira, saído em livro quatro anos antes do póstumo brasileiro (1853). Ambos usam convictamente o bipentassílabo (verso marcante na lírica de Guerra Junqueiro) e, várias vezes, o seu quebrado. Ambos puxam para epígrafes dos seus versos, ou por outra forma revelam, leituras dos mesmos autores – o que mostra, mais uma vez, que Maia Ferreira não estava desfasado relativamente aos contemporâneos. Álvares de Azevedo, no entanto, vem reforçar a cotação do romantismo ultra e pesado, desesperado, byroniano pelo mito do poeta aventureiro e boémio mas com um discurso ainda algo forçado, cheio também de sombras, trevas, fatalismo, visões negativas e pena de si próprio, sem a lucidez e o riso da exata ironia de Lord Byron. Ele representa intensamente a segunda geração romântica brasileira por isso mesmo e pela sua biografia. Tecnicamente, o verso do brasileiro é mais ágil e bem ritmado que o nosso, mais musical e, com isso, trouxe-nos um estímulo fundamental.

 

Nas suas Memórias da literatura contemporânea, A. P. Lopes de Mendonça refere dois poetas brasileiros e um deles é, precisamente, M. A. Álvares de Azevedo. Num livro que circulou por Angola, o crítico português foi dos poucos a perceber, logo na altura, “um talento de primeira ordem” (Mendonça, 1855 p. 319). Realça nele a “musa graciosa e fácil” (exemplificada no sensual poema «sonhando», que Lopes de Mendonça transcreve (Mendonça, 1855 p. 321)), “vivacidade e movimento, qualidades dramáticas, estilo ligeiro e solto, ironia fina e penetrante.” (Mendonça, 1855 p. 320) Esta referência reforçaria o nome do malogrado poeta brasileiro entre nós.

 

As principais influências atribuídas a Álvares de Azevedo – Chateaubriand, Lamartine (a Lira dos vinte anos abre com uma epígrafe dele) e Musset (de quem analisou Jacques Rolla, como diz numa carta constante das Obras (Azevedo, 1853 p. XLIII)) – não são estranhas ao nosso meio literário do século XIX. Menos comum foi a presença de um seu professor: Gonçalves de Magalhães. Mas os clássicos citados, mais Dante e Shakespeare, Gil Vicente, V. Hugo, A. Chénier, Byron (de quem tentou traduzir a Parisina), T. Chatterton, Gonçalves Dias, Goethe (o Fausto, pelo menos), Werner, G. Sand, Th. Gautier, Ossian, Serpa Pimentel, A. Dumas, A. de Vigny (os dois últimos nomes leituras de José de Alencar em São Paulo), Th. Moore, Shelley, L. Uhland, Lamennais (“o bardo santo” (Azevedo, 1853 p. 124)), Camões, Ariosto, C. Marot, Cervantes (D. Quixote, claro), Tasso, Filinto Elíseo, até a Bíblia, apenas alargam ligeiramente o leque de leituras literárias que venho registando para o nosso meio.  

 

                            *

 

Há outros autores cujas obras literárias seguramente circularam por Angola a tempo de os poetas do Jornal de Loanda as terem lido. Não posso reduzir as referências poéticas dos nossos autores às citações e epígrafes de Maia Ferreira e de Cordeiro da Mata, até porque eles próprios leram mais obras do que aquelas que citaram ou epigrafaram. Para que o leitor tenha uma ideia mais abrangente do mercado literário lusófono da época, no qual estávamos imersos, falo de alguns desses autores ainda não comentados.




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[1] Palavra que Maia Ferreira e outros (por ex.: Cândido Furtado) usam para falar de Angola ou de África.

[2] Ou seja: rústico.

[3] Quanto aos dois aspetos (o da controversa autoria e o das preocupações de que falo, que se tornaram canónicas), leia-se o ponto crítico de situação feito por Regina Zilberman (Zilberman, 1997).

[4] Do poema «Grinalda», de 1843, publicado em Flores sem fruto.

[5] João António dos Santos. A tradução publicou-se em Lisboa em 1837.

[6] O autor enviara um exemplar a Garrett, segundo uma sua carta inserida no livro de Eduardo Honório (Honório, 2000 pp. 60-61).

[7] Castelo Branco, João de Lemos Seixas, et alii – A semana: jornal litterario e instructivo. Lisboa: IN, 1850.

[8] A geração nova, cit., p. 52.

[9] Estava na Direção a Dr.ª Rosa Cruz e Silva, a quem pessoalmente pedi acesso a essa e outras obras. Por este motivo, não pude ver a maioria das obras constantes dos ficheiros do AHN.

[10] Repare-se no ritmo e métrica dos versos, que vai caraterizar precisamente no período realista, parnasiano e simbolista.

[11] Cf. as intertextualizações de Cordeiro da Mata com Bocage de que também falo neste livro.

[12] V. a nota 9 do cp. IX («No Baroze»).

[13] Escrito em “dia de Natal de 1888” e publicado no Suplemento ao Almanach de lembranças para 1890 (p. 35).

[14] Como as descreve no prólogo aos Primeiros Cantos.

[15] Normalmente não referidos pela crítica (nem pelos anúncios de jornais) são os dramas deste poeta, imprimidos no Rio de Janeiro. Razão pela qual também não os mencionamos aqui, até porque estavam também ausentes em qualquer das fontes angolanas investigadas.

[16] Na mesma tipografia onde se imprimiu a revista Beija-flor, de que foi co-fundador João d’Aboim (Sant'Anna, 2010 p. 20).

[17] II (1847) 272-273.

[18] Acontece com os Primeiros cantos algo parecido com o que viria a suceder com as Espontaneidades. A data no livo é sempre a de 1846; o prólogo é de julho de 1846; entretanto a impressão, segundo os mais diversos autores, terá sido em 1847. Confesso que não consigo identificar a fonte onde recolhi a informação de que a impressão teria sido feita em janeiro de 1847, o que posso garantir é que ela circula pela nossa bibliosfera. 

[19] O livro foi consultado em edição digital, que não reproduz o número das páginas.

 

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